ANTES E DEPOIS: Avenida 23 de Maio, que integra o Corredor Norte-Sul da cidade de São Paulo, tem grafites apagados pelo programa “Cidade Linda” / Prefeitura de São Paulo / Divulgação
Da Redação
Publicado em 26 de janeiro de 2017 às 14h34.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h13.
Camila Almeida
A gestão do prefeito recém empossado da cidade de São Paulo, João Doria (PSDB), tem focado a limpeza e a ordem – desafios descomunais para uma cidade de mais de 11 milhões de habitantes. Guiado pelo programa “Cidade Linda”, o novo gestor, que tem anos de experiência em marketing e eventos, tem apagado pichações e grafites dos muros e apresentado iniciativas de zeladoria, inclusive vestido de gari. Nesta quinta-feira, em resposta às críticas dos movimentos de artistas, Doria anunciou a criação de um Museu de Arte de Rua, onde os grafites terão espaço específico para serem apresentados ao público.
Para discutir essa perspectiva de embelezamento da cidade, EXAME Hoje conversou com a arquiteta e urbanista Maria Cristina Leme, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, PhD em sociologia urbana e autora do livro “O urbanismo no Brasil: 1895-1965”, que discute a evolução do planejamento urbano nas cidades brasileiras e os ideais que os permearam.
Quando a gente ouve falar de Cidade Linda, soa como um conceito do século passado, em que o planejamento urbano se baseava no embelezamento. Faz sentido retomar esse conceito nos dias de hoje?
No início do século 20, os projetos de embelezamento tinham como modelo a cidade de Paris. As reformas que foram feitas lá se tornaram uma referência muito forte não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e em outras cidades da América Latina. Em São Paulo, um exemplo é o Vale do Anhangabaú, na década de 10. Esses projetos tinham uma ideia de embelezamento, saneamento, erradicação de cortiços e tinham também o objetivo de melhorar a circulação de cidades que já estavam começando a ficar congestionadas. Não são os mesmo objetivos que estão sendo lançados agora. O que está no discurso do prefeito é uma ideia de zeladoria urbana. Ele diz que vai ser o melhor zelador da história da cidade.
Mas, lá no início do século 20, surgiram projetos como a Cidade Radiante, de Le Corbusier, ou movimento City Beautiful. Eles se assemelham em algo com a Cidade Linda?
A City Beautiful surge com uma ideia de embelezamento num momento em que Paris estava fervilhando industrialmente. Havia grandes exposições de produtos industriais, e foram construídos os grandes palácios para receber esses eventos. A ideia era que a própria cidade fosse um objeto de exposição. Então, a “cidade bonita” nesse movimento era uma cidade que se expunha nos seus melhoramentos: as grandes avenidas, os monumentos, as habitações que foram retiradas ao longo do Rio Sena… Paris, Chicago, várias cidades viveram isso. Já a Ville Radieuse de Le Corbusier propõe uma cidade aberta ao verde, à luz. Mas são modelos. Nós estamos falando sobre uma cidade muito real, e sobre intervenções sociais na cidade real.
Falando dessas intervenções, elas parecem fazer muita questão de ordenar a cidade. Em relação ao controle das pichações, dos ambulantes, Como o picho, os ambulantes e a própria Virada Cultural, que o prefeito chegou a dizer que seria transferida para o Autódromo de Interlagos…
Esse é o ideal de uma cidade muito mais pensada para uma população de alta renda, não para a população em geral. Isso é uma questão importante nestas medidas que estão sendo tomadas. A ideia toda da Virada Cultural, por exemplo, é a de ter os espaços públicos como espaços culturais, abertos para toda a população. A região central é onde está a memória da cidade, onde ainda há edifícios antigos e onde tem a maior acessibilidade. O bairro de Interlagos, na extrema zona sul, tem acesso bem mais restrito – e é como tornar reclusa uma atividade que deveria ser para todos.
São Paulo é uma cidade gigantesca, caótica em vários sentidos, e extremamente diversa. Esse tipo de iniciativa, por exemplo, de apagar os muros, é uma tentativa de suprimir essa diversidade?
Sem dúvidas. O picho tem sido reconhecido simplesmente como se fosse uma agressão à cidade. Acho que essa que é a costura desse apagar das pichações; não se reconhece que elas são políticas. Elas são ações de jovens que, de certa forma, se apropriam da cidade e deixam essas marcas, que são assinaturas. São jovens da periferia que não estão mais reclusos à periferia. Quando eles sobem num prédio, ou na Ponte Estaiada, eles estão mostrando que essa cidade é deles. É o lugar onde eles podem se manifestar. É uma situação que vai ter que ser olhada com muito cuidado.
É de se esperar que haja mais embates entre os movimentos sociais e artísticos com a gestão atual? Esses grupos devem se fortalecer ao longo desses quatro anos?
Intelectuais e artistas estão alertando para o fato de esses movimentos serem legítimos, importantes e a necessidade de serem reconhecidos. Eu espero que não haja embate e que o prefeito seja sensível a essas falas. Há um conjunto enorme de grupos que já tem identidade, local de manifesto, redes de relações… Esses grupos estão se organizando e mostrando suas demandas. Então, espero que sejam ouvidos.
Já houve, em gestões anteriores, essa tentativa de limpar e ordenar a cidade, como propõe o atual prefeito?
Essa ideia está muito presente nos administradores públicos. Não é uma novidade, nem uma atitude original do prefeito. Com o Gilberto Kassab, a gente conseguiu ter uma cidade sem anúncios e outdoors, o que foi interessante. Foi possível perceber com mais clareza a arquitetura, as grandes obras. O que me parece curioso é essa questão da zeladoria. Ela me deixa bastante surpresa porque se espera do prefeito mais do que isso. Se espera uma ação propositiva. A cidade tem muitos problemas e muitas questões a serem enfrentadas, que exigem um horizonte muito largo. São Paulo é uma cidade complexa, com desafios de emprego, saneamento, habitação, mobilidade urbana… Eu espero que essa fase não se prolongue. A cidade merece a atitude de um verdadeiro gestor público, que sem dúvida vai além da zeladoria.