Ustra: coronel teria ordenado a tortura do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado em julho de 1971 (Wilson Dias/Agência Brasil)
Agência Brasil
Publicado em 17 de outubro de 2018 às 20h56.
A Justiça de São Paulo extinguiu nesta quarta-feira, 17, o processo que havia condenado o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, ao pagamento de uma indenização de R$ 100 mil à família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado em julho de 1971 durante a ditadura militar.
Na decisão de primeira instância da ação por danos morais movida pela família de Merlino, o coronel Ustra havia sido condenado à indenização por ter participado e comandado sessões de tortura que mataram o jornalista. No entanto, a defesa de Ustra recorreu da ação e conseguiu a extinção.
A decisão desta quarta-feira, dos desembargadores Luiz Fernando Salles Rossi, Mauro Conti Machado e Milton Paulo de Carvalho Filho, foi unânime no entendimento da extinção do processo ao considerar que houve prescrição da ação.
Segundo a turma julgadora, foi ultrapassado o prazo de 20 anos previsto no Código Civil para ajuizamento do processo. A ação foi proposta em 2010 pela esposa e pela irmã de Merlino.
A viúva do jornalista, Ângela Mendes Almeida, lamentou a decisão da Justiça paulista e disse que vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Para mim, [a decisão] representa uma espécie de licença para torturar, porque a tortura foi completamente desqualificada [no tribunal]", disse. "Eles são juízes conservadores e acham que esses crimes não são importantes".
Integrante do Partido Operário Comunista à época, Merlino foi preso em 15 de julho de 1971, em Santos, e levado para a sede do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Lá, ele foi torturado por cerca de 24 horas e morto quatro dias depois.
De acordo com a família de Merlino, o coronel Ustra foi quem ordenou as sessões de tortura que o levaram à morte. Ustra foi comandante do DOI-Codi em São Paulo, um dos maiores centros de repressão durante a ditadura.
Para o procurador regional da República Marlon Weichert, "a decisão do TJ [ao extinguir a ação de Merlino] é equivocada, [porque] ela está em desconformidade com todos os fundamentos da Corte Interamericana [de Direitos Humanos] e com a jurisprudência do STJ [Superior Tribunal de Justiça]".
Apesar de a ação de Merlino ser de reparação e não uma ação criminal, Weichert considera que o entendimento da corte deve ser aplicado também neste caso.
"Toda a fundamentação, toda a construção do que diz a corte, que classificou os crimes cometidos pela ditadura como crimes contra a humanidade, no nosso entendimento, e isso nós defendemos desde lá de trás em outra ação reparatória que nós fizemos contra o Ustra, se aplica também para as ações civis. Nesse sentido, a decisão do TJ está equivocada", disse o procurador.
"O STJ tem entendido que não há prescrição para essas graves violações de direitos humanos para reparações cíveis. Foram casos movidos contra a União, mas também nós entendemos que se aplica aos responsáveis diretos, que são as pessoas que praticaram a violação", disse.
Ele citou que a família do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975, também durante a ditadura militar, entrou com ação cível na década de 90 contra a União e ganhou a reparação pela Justiça.
No início de julho deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que o assassinato de Herzog cumpriu os requisitos de crime contra a humanidade, o que extingue as possibilidades de prescrição e de anistia dos torturadores e assassinos, possibilitando a reabertura das investigações sobre sua morte.
Representantes do Ministério Público Federal disseram na ocasião que a forma como se organizou a repressão política no Brasil consistia em um ataque sistemático e generalizado contra a população, o que caracteriza crime contra a humanidade, e que isso foi confirmado com a sentença da Corte.
Para a diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, a decisão da corte vale para outros crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil porque as características do caso Herzog se repetem nos demais crimes ocorridos durante o período de repressão.
Ela disse, na época da decisão da corte interamericana, que todas as violações praticadas por militares e civis a mando da ditadura militar, de 1964 a 1985, ocorreram no contexto de crime contra a humanidade, tornando-as imprescritíveis.