James Heckman, vencedor do prêmio Nobel de Economia (foto/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 25 de setembro de 2017 às 05h30.
Última atualização em 25 de setembro de 2017 às 18h51.
O americano James Heckman, 73 anos, é reverenciado tanto em sua área de origem, a economia — que lhe rendeu o Prêmio Nobel em 2000 —, como na educação, que ele investiga com a curiosidade de quem ama calcular. Heckman criou métodos científicos para avaliar a eficácia de programas sociais e vem se dedicando aos estudos sobre a primeira infância — para ele, um divisor de águas. É sobre esse assunto que falará, na segunda-feira 25, no encontro Os desafios da primeira infância — Por que investir em crianças de zero a 6 anos vai mudar o Brasil, organizado pelas revistas Exame e VEJA e apoiado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, pela Fundación Femsa e pela United Way Brasil. Professor na Universidade de Chicago, Heckman veio uma dezena de vezes ao Brasil. Estava no Rio quando recebeu o telefonema de sua vida. “Disseram-me que seria premiado com o Nobel, e eu achei que era trote”, revela ele, que fala com rara propriedade sobre o país.
Por que os estímulos nos primeiros anos de vida são tão decisivos para o sucesso na idade adulta? É uma fase em que o cérebro se desenvolve em velocidade frenética e tem um enorme poder de absorção, como uma esponja maleável. As primeiras impressões e experiências na vida preparam o terreno sobre o qual o conhecimento e as emoções vão se desenvolver mais tarde. Se essa base for frágil, as chances de sucesso cairão; se ela for sólida, vão disparar na mesma proporção. Por isso, defendo estímulos desde muito cedo.
Quão cedo? Pode parecer exagero, mas a ciência já reuniu evidências para sustentar que essa conta começa no negativo, ou seja, com o bebê ainda na barriga. A probabilidade de ele vir a ter uma vida saudável se multiplica quando a mãe é disciplinada no período pré-natal. Até os 5, 6 anos, a criança aprende em ritmo espantoso, e isso será valioso para toda a vida. Infelizmente, é uma fase que costuma ser negligenciada — famílias pobres não recebem orientação básica sobre como enfrentar o desafio de criar um bebê, faltam boas creches e pré-escolas e, sobretudo, o empurrão certo na hora certa.
Qual é o preço dessa negligência? Altíssimo. Países que não investem na primeira infância apresentam índices de criminalidade mais elevados, maiores taxas de gravidez na adolescência e de evasão no ensino médio e níveis menores de produtividade no mercado de trabalho, o que é fatal. Como economista, faço contas o tempo inteiro. Uma delas é especialmente impressionante: cada dólar gasto com uma criança pequena trará um retorno anual de mais 14 centavos durante toda a sua vida. É um dos melhores investimentos que se podem fazer — melhor, mais eficiente e seguro do que apostar no mercado de ações americano.
Se isso é tão claro, por que a primeira infância não está na ordem do dia de quem tem a caneta na mão para decidir? Há ainda uma substancial ignorância sobre o tema. Algumas décadas atrás, a própria ciência patinava no assunto. A ideia que predominava, e até hoje pesa, é que a família deve se encarregar sozinha dos primeiros anos de vida dos filhos. A ênfase das políticas públicas é na fase que vem depois, no ensino fundamental. E assim se perde a chance de preparar a criança para essa nova etapa, justamente quando seu cérebro é mais moldável à novidade.
A classe política também evita olhar para a primeira infância por achar que esse é um investimento menos visível a curto prazo? Os políticos podem, sim, considerar isso, mas estão redondamente enganados. Crianças pequenas respondem rápido aos estímulos de qualidade. Para quem tem o poder de decidir, deixo aqui a provocação: não investir com inteligência nesses primeiros anos de vida é uma decisão bem pouco inteligente do ponto de vista do orçamento público. Basta usar a matemática.
O que mostra a matemática? Vamos pegar o exemplo da segurança pública. Há ao menos dois caminhos para mantê-la em bom patamar. Um deles é contratar policiais, que devem zelar pelo cumprimento da lei. O outro é investir bem cedo nas crianças, para que adquiram habilidades, como um bom poder de julgamento e autocontrole, que as ajudarão a integrar-se à sociedade longe da violência. Pois a opção pela primeira infância custa até um décimo do preço. Recaímos na velha questão: prevenir ou remediar? Como se vê, é muito melhor prevenir.
O senhor pode soar fatalista: ou bem a criança é estimulada cedo ou terá perdido uma oportunidade única para o aprendizado? A discussão realmente abre uma margem para essa interpretação, mas não é bem isso. A mensagem jamais pode ser: depois dos 5 anos, já era. Desde que a criança esteja vivendo em sociedade, ela vai aprender. Existe na espécie humana uma extraordinária capacidade de se beneficiar do ambiente. Só não podemos deixar de encarar o fato de que uma criança que tenha sido alvo de elevados incentivos conquistará uma vantagem para o resto da vida. De outro lado, quanto mais uma criança fica para trás, mais dificuldade ela terá para preencher as lacunas do princípio.
O senhor discorda então de uma ala de cientistas que vê as chamadas janelas de oportunidade para o aprendizado como algo mais definitivo? Acho que há exagero nesse campo: é como se tivéssemos no cérebro janelas que se abrem por inteiro numa fase e se fecham por completo em outra. Dito isso, há, sim, momentos mais favoráveis para a aquisição de certos conhecimentos: se quiser falar um idioma sem sotaque, é mais apropriado começar aos 8 do que aos 16 anos.
A propósito dos 8 anos, o economista Adam Smith (1723-1790) dizia que as crianças eram todas essencialmente iguais até essa idade. O senhor concorda? Não. Smith tinha uma visão idealista segundo a qual todos seríamos iguais por natureza até esse ponto da vida e, só aí, começaríamos a nos diferenciar uns dos outros. Mas a ciência já deixou claro que há capacidades inatas que nos distinguem, como a noção espacial ou a habilidade numérica ou ainda o talento para piano, artes e xadrez. Reconhecê-las e incentivá-las cedo torna-se uma vantagem.
Que tipo de política pública de primeira infância tem surtido mais efeito? O grande impacto positivo vem de programas que conseguem envolver famílias pobres, creches e pré-escolas, centros de saúde e outros órgãos que, integrados, canalizam incentivos à criança — não só materiais, evidentemente. O programa americano Perry, da década de 60, é um exemplo clássico de que o investimento em uma boa pré-escola produz ótimos resultados.
Por que esse modelo é bom? Ele envolve ativamente os alunos em projetos de sala de aula, lapidando habilidades sociais e cognitivas, sob a liderança de professores altamente qualificados. A família mantém um estreito elo com a escola. Temos de ter sempre certeza de que a família está a bordo, qualquer que seja a iniciativa.
Não é irrealista esperar tanto de famílias que vivem na pobreza, como no Brasil? Um bom programa de primeira infância consegue ajudar a família inteira, fazendo chegar até ela informações, boas práticas e valores essenciais, como a importância do estudo para a superação da pobreza.
Pesquisas brasileiras mostram que muitas crianças que frequentam creches e pré-escolas acabam se saindo pior nos primeiros anos de estudo do que outras que ficam em casa. O resultado o espanta? Não. Já vi estudos que chegaram a conclusão idêntica nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa. Trata-se de uma questão sem resposta absoluta: tudo depende do tipo de incentivo que a criança tem em casa e daquele que receberá na creche. Não é que a escola faça mal, mas é preciso indagar: onde a criança tem mais a ganhar ou menos a perder?
O que o Brasil pode aprender com a experiência internacional? Os programas de maior retorno são justamente aqueles que se apoiam em uma rede e, através dela, levam às famílias toda sorte de incentivos, de diferentes áreas que convergem. Aliás, o Brasil tem uma vantagem aí: o sistema público de saúde alcança todos os cantos e pode funcionar como ponto de partida para essa rede de estímulos. O país também deveria prestar atenção na qualidade dos professores: países como a Finlândia souberam valorizar a carreira docente — não apenas no salário, que fique claro — e colheram grandes resultados na educação desde cedo.
Existe um debate no Brasil sobre a extensão da licença paternidade — a lei brasileira garante hoje apenas cinco dias ao pai. O senhor é a favor? O princípio de o pai ter a chance de estreitar laços com o filho desde o começo é bem-vindo. Os benefícios vão depender, porém, de como esse tempo será efetivamente aproveitado.
O senhor é um dos precursores de uma discussão que agora está em alta nas rodas educacionais: o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. É possível mesmo ensiná-las? Sim, na escola e em casa. O grande erro nesse debate é tratar tais habilidades — autocontrole, resiliência, trabalho em equipe — como algo que não tem nada a ver com as habilidades cognitivas, o aprendizado das matérias propriamente ditas. Não existe essa fronteira. O bom professor está sempre ensinando as duas: ao aprender a ler e a soletrar as palavras, a criança interage com amigos, forma vínculos, lida com emoções ligadas ao sucesso e ao fracasso — enfim, aprende a se comunicar de forma ampla.
Por que tantos educadores torcem o nariz quando se fala em habilidades socioemocionais? Eles ainda estão aferrados à ideia obsoleta de que inteligência se resume a QI, um conceito de cinquenta anos atrás que não evoluiu com o mundo.
Ler para a criança desde cedo está no rol dos grandes incentivos de efeito comprovado pela ciência. Por que isso é tão poderoso? Porque estimula ao mesmo tempo o gosto pela leitura, a capacidade de comunicação e a curiosidade para adquirir conhecimento. Se nada der errado, isso se desdobrará por toda a vida.
O incentivo dos pais pode virar exagero? Observo em famílias de classes mais altas uma tendência à proteção exagerada dos filhos. Considero isso um erro. Todo mundo deve experimentar não só as vitórias como também os fracassos. São eles, afinal, uma fonte essencial para o aprendizado.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549