Bolsonaro (Adriano Machado/Reuters)
Clara Cerioni
Publicado em 24 de agosto de 2019 às 08h00.
Última atualização em 26 de agosto de 2019 às 13h53.
São Paulo — "Fui eleito para interferir mesmo": A frase de Jair Bolsonaro no dia 21 de agosto é uma reação às críticas sobre sua atuação direta em órgãos que participam do combate à corrupção do Brasil — atitude sem precedentes para um presidente da República na história recente do país.
Só no último mês, Bolsonaro assinou uma Medida Provisória para transferir o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para o Banco Central, declarou, de surpresa, que trocaria o superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro e também disparou mudanças na Receita Federal.
Além disso, o presidente já indicou que não irá escolher alguém da lista tríplice formulada por procuradores para suceder a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, quebrando uma tradição.
Apesar de Bolsonaro negar que suas interferências tenham motivação pessoal, as mudanças afetam órgãos que investigam áreas de seu interesse e de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ).
Foi por um relatório de inteligência do Coaf que o Ministério Público do Rio de Janeiro descobriu movimentações bancárias atípicas de R$ 1,2 milhão do policial militar Fabrício Queiroz, ex-assessor do gabinete de Flávio, então deputado estadual.
O relatório do Coaf também mostrou que Flávio recebeu em sua conta 48 depósitos, num intervalo de cinco dias, feitas em uma agência dentro da Alerj e no mesmo valor: R$ 2 mil. A prática de devolver parte dos salários de assessores para o próprio parlamentar é conhecida como "rachadinha".
As revelações vieram à público em dezembro do ano passado e, até hoje, não tiveram um desfecho.
Recentemente, a pedido da defesa do senador, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu qualquer investigação em curso no Brasil, que tenha se originado por meio de relatórios do Coaf, da Receita Federal e do Banco Central sem autorização da justiça.
Especialistas ouvidos por EXAME consideram que, independente da motivação, as interferências diretas são um sinal negativo para a luta contra a corrupção no Brasil, que está na 105ª posição no ranking da Transparência Internacional, que avalia a percepção de corrupção em 180 países.
"Em uma perspectiva geral, em todos os órgãos de fiscalização e controle é imprescindível que haja transparência nos processos e nas motivações para as interferências", diz Thiago Turbay, assessor parlamentar do Instituto de Proteção das Garantias Individuais.
Nesta semana, o governo apresentou uma MP para transformar o Coaf na Unidade de Inteligência Financeira do BC. O presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto, mudou o chefe do órgão de fiscalização, mas mantendo seus conselheiros.
A mudança também abriu brecha para indicações políticas no seu Conselho Deliberativo, suscitando críticas de servidores.
Ricardo Liáo, servidor de carreira aposentado do banco que atuava como diretor de Supervisão do Coaf, assume a presidência do órgão em seu novo formato. Ele vai suceder Roberto Leonel que, indicado por Sérgio Moro para o comando do Coaf, foi dispensado.
Segundo Bolsonaro, a mudança busca blindar o Coaf, cujos dados foram essenciais para as revelações do mensalão e da Lava Jato, de interferências e pressões políticas.
Mas o contexto da mudança chama a atenção, já que vem após Leonel criticar a decisão do STF que suspendeu as investigações com base em dados compartilhados pelo órgão.
"Ainda não é possível saber se a mudança será positiva ou não, porque como é uma movimentação com diversos atores, dá pra melhorar ou piorar algo que já estava funcionando", opina Heloísa Estellita, professora da Fundação Getulio Vargas, especialista em lavagem de dinheiro.
Segundo ela, o que dá para dizer por enquanto é que a indefinição do Coaf, considerado um caso de sucesso no combate ao problema, é prejudicial ao Brasil.
"Já se vão oito meses que a estrutura do órgão não está funcionando na íntegra e ainda será necessário uma aprovação do Congresso para a MP. Nesse processo, pode ser prejudicada a confecção dos relatórios da inteligência", diz.
A mudança foi criticada em nota conjunta do Sindicato dos Delegados de Polícia Federal do Estado de São Paulo e do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.
“É de se estranhar que um governo eleito com a bandeira do combate à corrupção adote medidas que visam enfraquecer instituições que desempenham um papel de excelência”, afirma a presidente do SINDPF SP e diretora regional da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) em São Paulo, Tania Prado, em nota.
Na última segunda-feira (19), foi a vez da Receita Federal anunciar a exoneração de João Paulo Ramos Fachada, o "número dois" do órgão.
De acordo com o Estadão, pessoas ligadas a Bolsonaro haviam solicitado a troca de dois delegados locais da Receita: um da Barra da Tijuca e outro responsável pela fiscalização no Porto de Itaguaí.
A região tem atuação de milicianos no tráfico de armas e outras mercadorias, além de ser foco de tráfico de drogas. A fiscalização tem sido reforçada no local. Fachada resistiu, assim como o superintendente no RJ, Mário Dehon.
Afastar o "número dois" teria sido uma forma de Marcos Cintra, secretário da Receita, satisfazer o Planalto sem revoltar o órgão. Segundo o presidente do sindicato dos auditores fiscais (Sindifisco), Kleber Cabral, havia uma ameaça de renúncia coletiva.
Na quarta-feira (21), dezenas de servidores da Receita fizeram um protesto contra "interferências externas”, um recado que vai muito além de Bolsonaro.
No começo do mês, Alexandre de Moraes, ministro do STF. afastou dois auditores da Receita e suspendeu fiscalizações sobre agentes públicos.
As mensagens reveladas pela Vaza Jato mostraram tentativas de levantar dados na Receita sobre ministros como Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
No último dia 15, Bolsonaro anunciou, de surpresa, que Ricardo Saadi, superintendente da PF no Rio, seria substituído pelo chefe da PF no Amazonas, Alexandre Silva Saraiva, por motivos de “produtividade”.
No mesmo dia, a corporação reagiu e sinalizou que Saadi não estava saindo por esse motivo e que não aceitaria uma indicação “de cima para baixo”.
Horas depois, Bolsonaro foi obrigado a baixar o tom e aceitar a indicação do superintendente de Pernambuco, Carlos Henrique Oliveira Sousa. O recuo de Bolsonaro atendeu a um pedido de Moro.
Nesta semana, o presidente disse que se não puder trocar o superintendente, irá trocar o diretor-geral, Maurício Valeixo. "Se eu trocar hoje, qual o problema? Está na lei que eu que indico e não o Sergio Moro. E ponto final", afirmou.
A declaração também foi recebida com críticas, uma vez que, apesar de a PF estar sob guarda-chuva do Ministério da Justiça, tradicionalmente os governantes decidem que o órgão tem autonomia.
"É da natureza do poder populista uma suspeita permanente em relação aos órgãos de Estado. A pergunta até que ponto as instituições são fortes para resistir. O risco no Brasil é que essas instituições, ao final, não tenham a força para manter sua independência, como se imaginava", diz Roberto Simon, líder do grupo anticorrupção do Americas Society/Council of the Americas.
O relatório cita a escolha do Procurador-Geral da República como um dos pilares do combate à corrupção no país e também um ponto de atenção.
Desde 2003, há a tradição de respeitar os mais votados da lista tríplice da ANPR para assumir o posto de chefe do Ministério Público Federal (MPF) como forma de garantir a autonomia e força política do cargo.
Mas desde que começou a corrida para anunciar o nome, Bolsonaro já se encontrou com mais de 15 candidatos. A maior parte deles tem sido sabatinada pelo senador Flávio Bolsonaro.
Será papel do próximo PGR participar das discussões no STF sobre autorização do uso de dados do Coaf pelo MPF sem prévia autorização judicial, que beneficiaram o parlamentar.
Ainda não há nenhuma definição sobre quem será o sucessor de Raquel Dodge, que deixa o cargo em 17 de setembro. A escolha ainda precisa ser sabatinada pelo plenário do Senado.