O vídeo mais recente, gravado em 2011 e divulgado em 2018, foi a única oportunidade em que os funcionários da Funai conseguiram se aproximar do indígena sem serem notados. (Funai/Acervo/Reprodução)
Agência O Globo
Publicado em 28 de agosto de 2022 às 17h13.
O único sobrevivente de uma etnia indígena desconhecida, que foi massacrada há quase 30 anos, morreu numa área isolada em Rondônia. O corpo de Tanaru — conhecido também como "índio do buraco", devido a costumeira presença de uma abertura no chão do local onde vivia — foi encontrado na última terça-feira por agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai), que lamentou a perda com "imenso pesar", em nota divulgada neste sábado. O indígena, que vivia em isolamento há cerca de 26 anos, era monitorado e protegido pela Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé e Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC).
Segundo a Funai, o indígena estava em sua rede de dormir em sua palhoça (cabana) localizada na Terra Indígena Tanaru. Não foram encontrados vestígios da presença de pessoas no local, nem marcações na mata durante o percurso. Também não havia sinais de violência ou luta. Os pertences, utensílios e objetos utilizados costumeiramente pelo indígena permaneciam em seus devidos lugares.
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Além disso, no interior da palhoça, havia dois locais de fogo próximos da sua rede. Seguindo a numeração da lista de habitações do Índio Tanaru registradas pela Funai ao longo de 26 anos, essa palhoça é a de número 53, seguindo o mesmo padrão arquitetônico das demais, com uma única porta de entrada/saída e sempre com um buraco no interior da casa.
A perícia da Polícia Federal foi acionada e contou com apoio de especialistas do Instituto Nacional de Criminalística (INC) de Brasília e de peritos criminais de Vilhena (RO). As atividades foram acompanhadas por servidores da Funai. Exames adicionais serão analisados pelo INC no DF.
"A Funai lamenta profundamente a perda do indígena e informa ainda que, ao que tudo indica, a morte se deu por causas naturais, o que será confirmado por laudo de médico legista da Polícia Federal", completou a instituição.
A morte do indígena também foi lamentada nas redes sociais. Internautas resgataram imagens de um documentário do antropólogo Vincent Carelli lançado em 2009 sobre a denúncia do indigenista Marcelo Santos de um massacre de povos isolados na Gleba Corumbiara (RO) em 1985. No vídeo, há uma das poucas imagens do "índio do buraco", mas não há um único registro em áudio para a identificação da língua.
Desde 1987, a Funai tem uma política de não fazer contato com povos indígenas isolados, mas de garantir a proteção dos territórios por eles ocupados. Como o “índio do buraco” estava solitário, foram feitas tentativas de aproximação, mas ele sempre mostrou claramente que não desejava ser contatado. Carelli participou da descoberta dos primeiros vestígios e avistamentos.
— Sempre que a gente encontrava a cabana onde ele estava, ele se mudava — relembrou, em 2018.
O vídeo mais recente, gravado em 2011 e divulgado em 2018, foi a única oportunidade em que os funcionários da Funai conseguiram se aproximar do indígena sem serem notados.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) também lamentou, neste sábado, a morte do "índio do buraco". Leia abaixo a nota na íntegra:
"[…] acho que ele vai ficar lá sozinho mesmo e vai ter suas dificuldades para sobreviver lá dentro (quando ficar velho). Acho que ele está pensando nisso muito mais do que a gente, pensando em como vai lidar com essa situação, porque vai precisar caçar, ir atrás de alguma coisa para se alimentar. A gente acha que, talvez, nesse momento ele vai pedir ajuda e espero que a gente esteja ali perto para ajudá-lo nesse final de vida (Altair Algayer em depoimento para o livro de Ricardo e Gongora, 2019: 237).
Mais um indígena, o último representante de seu povo, faleceu. No passado recente foi vítima de um processo de extermínio atroz, consequência da instalação de grandes fazendas patrocinadas pelo Estado. Presenciou a morte de seu povo, perdeu seu território para as pastagens e foi condenado a passar o resto da vida em uma pequena porção de floresta interditada pela justiça, cercada por grandes fazendas na região do rio Corumbiara, em Rondônia.
Por resistir com extremo afinco a quaisquer empreitadas de contato, faleceu sem deixar saber qual etnia a que pertencia, e nem as motivações dos buracos que escavava dentro de sua casa. Foi, por isso, chamado curiosamente de 'Índio do Buraco'. Com uma vida solitária, parece ter planejado até mesmo a sua morte. O 'Índio do Buraco' expressava claramente sua opção pelo afastamento sem nunca dizer uma única palavra que permitisse sua identificação com alguma língua indígena conhecida.
Os primeiros vestígios desse povo foram encontrados em meados da década de 1990, pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Guaporé, da Funai. Encontraram roças destruídas por fazendeiros e restos de casas que indicavam ter sido arrastadas por tratores.
Os fazendeiros, como se constatou por meio de relatos posteriores, haviam contratado pessoas para atirarem nos indígenas e depois remover com tratores as evidências da aldeia, tentando ocultar sua presença das buscas da equipe da FPE Guaporé. Os culpados pelo massacre jamais foram punidos (Reel, 2010 apud Matos et ali 2021, 136).
Desde então, uma luta judicial foi travada para a garantia da vida do 'Índio do Buraco' e da floresta remanescente onde vivia. A restrição de uso denominada Terra Indígena (TI) Tanaru foi estabelecida pela primeira vez em 1997, sendo renovada sucessivamente, sempre sob decisão judicial. A atualmente vigente é a Portaria 1.040/2015, de 16 de outubro, que prorrogou a interdição da área por mais 10 anos.
Ficaremos atentos para que a floresta que ainda resiste na TI Tanaru seja preservada em memória à triste história de mais um povo violentamente condenado ao desaparecimento. Mais um povo que deixa o mundo sem compartilhar seus cantos. Uma história cuja memória deve ser transmitida às novas gerações para que jamais se repita. O Opi seguirá lutando para garantir que o indígena da TI Tanaru tenha paz ao menos em sua morte, que suas decisões continuem sendo respeitadas, e que seu território não seja violado pela gana do agronegócio. A morte do 'Índio do Buraco' significa, por um lado, mais um capítulo trágico do persistente processo de genocídio que historicamente aflige os povos indígenas e, por outro, o seu derradeiro e mais extremo ato de resistencia.
Com sua morte, a TI Tanaru deve continuar interditada ao menos até que estudos arqueológicos e antropológicos sobre a cultura material e seu modo de ocupação ambiental sejam realizados.
A área da TI Tanaru deve seguir preservada como um memorial, em respeito à trajetória de resistência de seu residente solitário e para lembrar a todos a tragédia do genocídio indígena — para que não se repita jamais.
É preciso garantir que seu corpo seja respeitado, e que seja feito o seu retorno para o interior da TI Tanaru, de modo que sua passagem seja realizada com respeito às suas tradições culturais, claramente expressas em seus últimos momentos. Que os trabalhos de perícia sejam céleres.
Em tempo, prestamos uma especial homenagem ao indigenista Altair Algayer, o representante dos 'brancos' com quem esse indivíduo teve mais relação em vida. Foi das mãos dele e de sua equipe que recebeu algumas ferramentas e sementes para que pudesse incrementar sua qualidade de vida. Altair respeitava e fazia garantir sua autonomia, nunca tentou uma aproximação forçada, respeitou desde sempre suas decisões pelo isolamento, considerando-a expressão máxima de suas vontades. Algayer celebrou suas conquistas a cada roçado novo estabelecido ou artefato produzido, e se preocupou diuturnamente com o bem-estar do 'Índio do Buraco'. A Altair, nosso profundo respeito".