Hauly: "o caos tributário brasileiro destruiu a competitividade das empresas" (Antonio Araújo/Agência Câmara)
Gian Kojikovski
Publicado em 29 de setembro de 2017 às 19h04.
O sistema tributário brasileiro é criticado por diversos motivos. Empresários dizem que ele é excessivo e complexo, ajudando a piorar a competitividade dos produtos brasileiros; especialistas em tributos afirmam que a estrutura, proporcionalmente, onera demais os mais pobres, contribuindo para a desigualdade social; e a população sente no bolso quando consome, já que tributamos muito mais o consumo do que a renda.
Uma mudança completa nesse sistema é discutida há décadas — foram ao menos cinco propostas, duas com Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e três com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —, mas nada além de modificações mínimas saíram do papel até agora (incrementos no ICMS, criação de contribuições no lugar de impostos, etc). Isso pode mudar em breve. A Câmara dos Deputados está discutindo um projeto de reforma tributária que, se colocada em prática, diminuiria o número de impostos, aumentaria a tributação sobre renda, facilitando o consumo, e desoneraria, em partes, as camadas mais pobres da população.
Como toda grande mudança que envolve diferentes setores, a discussão é longa. Nesta semana, o plenário da Câmara recebeu uma Comissão Geral – quando, além dos deputados, representantes da sociedade civil também podem se pronunciar – sobre o tema. Estiveram presentes membros de diversas organizações de variados setores da economia, como sindicatos, indústria, serviços e cooperativas, debatendo a viabilidade da proposta e o medo de que ela aumente a tributação, além dos conflitos de interesse que emperram qualquer tentativa de mudança no sistema desde a Constituição de 1988. Após o encontro, o relator da proposta, deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) falou com EXAME sobre o assunto, explicando os principais pontos da reforma e a sua importância para o momento de crise que o país passa.
Como é a reforma tributária que o senhor está relatando na Câmara? O que muda em relação ao sistema atual?
Não gosto de chamar de reforma, mas de reengenharia tributária. Isso porque ela tem uma base tecnológica grande, ela vai simplificar o sistema e buscar a inclusão social e de desenvolvimento econômico. Ela é mais que a reforma tributária porque ela será uma reestruturação completa do modelo econômico brasileiro. A ideia é mudar a lógica do que se fez no Brasil nos últimos 40 anos em termos de impostos. São três as principais bases de impostos, os de propriedade, de renda e de consumo. A mudança que estamos trabalhando vai simplificar isso porque elimina a multiplicidade de impostos da mesma base. Os impostos patrimoniais permanecerão, mas serão uniformizados por uma legislação federal, que estamos elaborando em conjunto com auditores e assessores. Os impostos sobre renda, imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, serão unidos. A base do consumo, que tem nove tributos hoje, será reduzida a dois: o IVA, que deve se chamar IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e o imposto seletivo, que será sobre alguns produtos específicos que ainda estamos entendendo quais serão. Assim, eliminamos ISS, que é municipal, o ICMS, que é estadual, e os federais IPI, PIS, COFINS, Cide, salário-educação, Pasep e IOF. A Previdência e os impostos sobre importação e exportação ficam como é hoje.
É uma mudança muito grande. Como fazê-la partindo do sistema atual, que é bastante complexo?
Aí entra a tecnologia. Uma plataforma tecnológica para a cobrança do IVA e do imposto seletivo, e que também vai servir para a Previdência. Os impostos serão cobrados online, no ato de cada etapa da cadeia produtiva. O dinheiro do imposto já ficará retido e vai diretamente para a União, estados e municípios, de acordo com o percentual que cada um vai ter das três arrecadações.
Como será decidido esse percentual? Isso não pode gerar uma disputa entre União, estados e municípios?
Esse percentual vai ser o mesmo de hoje. Vamos fazer uma média de um, dois ou três anos de arrecadação, dependendo do que os economistas acharem melhor para ter uma boa medição, depois ver o percentual que vai para cada ente hoje e usar como base para distribuição do novo imposto. Isso para não ter briga de partilha, o que atravancaria o processo.
O que mais pode atrapalhar a reforma?
São 96 setores na economia, segundo o que o IBGE informa, que se subdividem em mais de 500.000 itens tributários. Como energia, por exemplo, que se desdobra em energia elétrica, combustíveis, etc. O compromisso que eu tenho, e que repito a cada palestra e conversa que tenho com representantes de cada setor da economia, é manter a carga tributária nos níveis que estão hoje. O que for extinto, será realocado em algum desses impostos criados. Então, as alíquotas praticadas hoje e que cada setor da economia tem, serão mantidas. Assim, eu garanto o compromisso de manter a arrecadação global, atendendo tanto o setor empresarial, para manter a carga atual, como dou a garantia institucional para a União de que não haverá diminuição de arrecadação. Até porque, se entrar nessa disputa, bateremos em um paredão e não avançaremos nunca.
Faz muito tempo que uma reforma tributária é discutida no Brasil, mas nenhuma iniciativa avançou, seja pela complexidade ou pela quantidade de interesses envolvidos. Em termos técnicos, por que a reforma é importante para o país?
Porque essa reengenharia tributária é a mãe de todas as reformas. No fundo, ela é mais econômica do que tributária. O caos tributário brasileiro, que é um Frankenstein de impostos, destruiu a competitividade das empresas. O produto industrial brasileiro não tem condições de competir com nenhum produto internacional. Isso mata a capacidade das empresas de gerar empregos, diminui o salário do setor industrial e por consequência dos serviços e do comércio. Fizemos um estudo que mostrou que de 1930 a 1980, o Brasil cresceu a 6,3% ao ano e o EUA a 3,5%. Crescemos quase o dobre da média do crescimento mundial. O Brasil vinha em um voo de águia, e, de repente, em 1981, primeiro ano da crise mundial, o Brasil caiu de 10% de crescimento do PIB para -4%. Dali em diante, nunca mais se acertou, cresceu na média 2,2% ao ano. Justamente por fazer essa análise temporal maior, dá para enxergar que tem um erro estrutural gravíssimo no Brasil. E qual é esse erro? Eu afirmo categoricamente que é a inadequação da nossa estrutura tributária, somada à guerra fiscal entre estados, à sonegação e à renúncia fiscal dos governos. Essa renúncia chega a 500 bilhões de reais por ano, a sonegação é de 460 bilhões. Não tem condições de dar certo um país como esse. Temos de ter um sistema tributário limpo, que não afete a concorrência e formação de preço dos produtos e serviços. Senão, não conseguiremos desenvolver a economia.
O Brasil tem uma tributação bastante regressiva, que retira proporcionalmente mais das pessoas com menos poder aquisitivo. Isso é criticado por organismos internacionais, como a OCDE. O senhor se refere à reforma como uma forma de inclusão social. É isso mesmo?
Sim, mas essa é uma outra etapa. Dividindo o processo em grandes etapas, primeiro faremos a simplificação, uma base e um acerto entre União, estados e municípios, isso que falei até agora [uma Proposta de Emenda à Constituição]. Aí vem o segundo momento, que passa por montar o modelo de tributação [que será feito por leis complementares]. Como relator, estou propondo um modelo que desonere de imediato comida e remédio – mais tarde sobre máquinas e equipamentos. Só com essa desoneração de comida e remédios, já teremos um ganho para as classes de baixa renda de cerca de 15% a 20% do poder aquisitivo deles. Vou dar um exemplo. A comida e o remédio tem cerca de 33% de impostos. Uma família que tem renda de 2.000 reais por mês gasta por volta de 1.200 com comida e remédios. Existem algumas isenções específicas, mas ela tem, hipoteticamente, 400 reais de tributos todo mês só nesses produtos. Com a reforma, ela terá 400 reais a mais para consumir por mês e isso já começa a redistribuir a renda. Essa diferença vai ser realocada no IVA de outros produtos, que normalmente são consumidos por famílias mais abastadas.
Mas essa segunda parte da reforma depende de lei complementar, enquanto a primeira, a simplificação, é feita por uma PEC. Qual o risco de se aprovar a emenda à Constituição, mas a lei complementar não sair e ficarmos em um limbo?
Por isso temos que fazer tudo junto. Nós estamos discutindo tudo junto para garantir que vai passar a lei complementar e a PEC ao mesmo tempo. Essa segunda parte da reengenharia é o momento de se fazer um grande entendimento entre trabalhadores, empresários, governo e Congresso, de se fazer um acordo para irmos transferindo gradativamente a carga tributária do consumo para a renda para procurarmos ir para a média mundial, que tributa muito mais a renda do que o consumo, e temos que tentar aproximar disso. E isso tem que ser gradativo, não dá para implantar da noite para o dia, porque corremos o risco de um choque no preço e termos risco de inflação por causa do aumento de demanda.
Vários estados e municípios usam os impostos locais para atrair empresas e indústrias, desonerando alguns setores da economia no qual tenham interesse. Igualando os tributos, é possível acabar com essa “guerra fiscal”?
Sim, isso acaba com a guerra fiscal. Os estados não têm saída, eles não têm muita alternativa. Estão quebrados, com uma dívida gigantesca. E já está provado que não é essa guerra fiscal para atrair indústrias e empresas que será a salvação.
Como se trata de uma mudança muito grande na estrutura econômica do país, é preciso um amplo debate. Todas as partes estão sentadas na mesa para conversar?
O governo deveria estar entrando mais nessa conversa, mas não entrou ainda. Ele está apagando o fogo na floresta, os estados e o próprio governo federal estão sofrendo para pagar as folhas salariais, então eles não conseguem parar para discutir isso. Os ministros, o governo como um todo, estão correndo atrás do rabo do cachorro, enquanto nós estamos pensando o Brasil.
Quando poderemos ver a reforma aprovada?
Tem que ser esse ano, é o que eu proponho. O mais difícil de todo o processo, nós estamos fazendo, que é negociar com todas as partes envolvidas. Alguns detalhes ainda precisam ser estudados, é preciso achar algumas alternativas. Quando se faz uma mudança, tem que saber que a mudança tem um custo.