Os lotes onde são erguidas as duas torres fazem parte de uma vasta área de 20 000 metros quadrados que é alvo de uma enroladíssima disputa judicial (Divulgação/ Thai Condominium Club)
Da Redação
Publicado em 2 de maio de 2012 às 18h36.
Rio de Janeiro - As obras do Thai Condominium Club, no Recreio dos Bandeirantes, a 50 quilômetros do centro do Rio, acontecem em ritmo acelerado, com operários trabalhando inclusive no turno da noite para que tudo por ali fique pronto até julho de 2013.
Lançado em outubro de 2010, o conjunto residencial foi um sucesso absoluto de vendas: seus 244 apartamentos de dois e três dormitórios acabaram sendo negociados ao preço médio de 400 000 reais em poucas semanas. Símbolo de uma cidade que se expande pela Zona Oeste, o empreendimento seria apenas mais um entre as dezenas que brotam na região, não fosse a complicada história dos terrenos que ocupa.
Os lotes onde são erguidas as duas torres fazem parte de uma vasta área de 20 000 metros quadrados que é alvo de uma enroladíssima disputa judicial. Trata-se de uma trama que envolve assinaturas falsificadas, nomes poderosos e pessoas de poucas posses que se tornaram proprietárias do dia para a noite.
Considerando o potencial de construção daquela área, a cifra em jogo é da ordem de 300 milhões de reais e põe em campos opostos o antigo dono, o notório ex-banqueiro Salvatore Alberto Cacciola, o italiano Luca Nicolotti, que se apresenta como o verdadeiro detentor da posse legal e vítima do golpe, e quatro construtoras. Entre elas está a João Fortes Engenharia, capitaneada pelo bilionário Antônio José de Almeida Carneiro, conhecido na alta-roda carioca como Bode. "Roubaram tudo", acusa Nicolotti.
Com quase 500 páginas, o inquérito policial que investiga o caso é bastante completo e destrincha os meandros da falcatrua. A história começa com um dos maiores escândalos financeiros do país.
Disperso entre a Avenida das Américas e a Estrada do Pontal, o terrenão pertencia originalmente ao banqueiro Alberto Cacciola, que o registrou em nome de uma empresa sediada no Uruguai.
Com a falência de seu banco, o Marka, em 1999, essa mesma empresa foi repassada a um grupo italiano amigo, hoje nas mãos do construtor romano Luca Nicolotti. Sem apoio do parceiro local, que ficou preso até recentemente, e com o mercado imobiliário em baixa, ele deixou o negócio parado até 2010, quando finalmente veio ao Brasil para conhecer sua propriedade.
Na visita, teve uma bela surpresa: descobriu que o terreno, dividido em dez lotes, havia sido repassado para pessoas e empresas com as quais nunca teve contato. Realizada por grileiros especializados em se apossar de imóveis na Zona Oeste, a fraude foi lavrada em nove cartórios do Rio, Niterói, Petrópolis, Duque de Caxias e Nova Iguaçu.
Segundo a documentação forjada, a representante legal de Nicolotti, a uruguaia Adriana Moreno Sosa, teria comparecido pessoalmente aos tabelionatos para efetivar as transações. O problema é que Adriana não tinha posto os pés no Brasil até fevereiro deste ano, quando foi intimada a depor na 42ª DP, delegacia responsável pela apuração do crime. Além disso, seu cargo na firma do italiano não lhe dava poderes para negociar seu patrimônio. "Estamos fazendo de tudo para prender os responsáveis. Temos indícios suficientes para dizer que os documentos usados são falsos", afirma a delegada Adriana Belém, que, por uma irônica coincidência, trabalha em frente ao condomínio em obras.
Grosseira, a fraude reúne todos os elementos dos crimes contra a propriedade no país: a ousadia dos estelionatários, a incompetência de quem deveria evitar a manobra e os já clássicos laranjas, gente simples que empresta o nome para negócios escusos.
A transação envolvendo os terrenos comprados pela João Fortes é um exemplo emblemático dessa dinâmica. Em setembro de 2008, o ex-vigia Abílio Veiga da Trindade, 45 anos, tornou-se oficialmente dono de três dos dez terrenos. Segundo as escrituras, lavradas pelo 7º Ofício de Duque de Caxias, ele teria pago 1,7 milhão de reais pelas aquisições. A operação surpreende por se tratar de alguém que tem padrão de vida incompatível com a movimentação de tal volume de recursos.
Com os estudos interrompidos no 4º ano do ensino fundamental, Trindade foi dono de uma lojinha de informática em Vila Valqueire, subúrbio carioca, e trabalhou como vigilante do shopping Downtown, na Barra. Hoje, mora de favor na casa da mãe, em Oswaldo Cruz. Seu único bem é um Ford Fiesta 1998 - amassado. Em entrevista a VEJA RIO, ele alegou que pediu dinheiro emprestado a dois amigos e nem sequer teve conhecimento da revenda dos lotes para a João Fortes.
No dia da transação, 29 de abril de 2009, ele de fato não compareceu, sendo representado pelo advogado Leovegildo de Oliveira Pinto. "Você acha que eu estaria morando aqui se tivesse recebido alguma coisa?", pergunta Trindade. "Fui enrolado por um corretor que me prometeu um excelente negócio e me deixou de mãos abanando."
Excelente negócio mesmo fez a João Fortes, que sacramentou a aquisição por 1,64 milhão de reais - e vendeu os 244 apartamentos rapidamente. A cifra causa estranheza, pois é inferior à que o ex-vigia teria pago e equivalente a apenas um terço do que valiam, na ocasião, terrenos semelhantes no mesmo bairro.
Na sede da construtora, um potentado com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo e dona de excelente reputação, a investigação policial é minimizada. Os executivos ouvidos por VEJA RIO afirmam que a documentação dos três lotes estava em situação normal e que a empresa procedeu a todas as pesquisas de praxe envolvendo as propriedades, sem identificar nenhuma irregularidade.
Também declaram que o preço era compatível com o praticado pelo mercado. "Foi uma compra absolutamente comum, como outra qualquer", diz o diretor nacional de negócios da construtora, Luiz Henrique Rimes. "Seria uma irresponsabilidade cancelarmos o lançamento. Os proprietários podem ficar tranquilos. O risco é zero."
Embora a postura dos executivos seja de total confiança em um desfecho favorável, a disputa nos bastidores é bem mais pesada. Em outubro de 2010, a uma semana do lançamento do condomínio, os advogados de Nicolotti comunicaram ao departamento jurídico da João Fortes que a posse dos terrenos estava sob suspeição e que ela seria questionada judicialmente.
A construtora seguiu com a operação. Outra empresa na mesma situação, a Labes e Labes Consultoria e Empreendimentos Imobiliários, que havia comprado um dos dez lotes, preferiu adotar um caminho diferente, abortando seus planos até que a Justiça se pronuncie sobre o caso.
No início deste ano, Nicolotti desembarcou no Rio para uma derradeira tentativa de acordo com a João Fortes. Depois de acenar inicialmente com uma proposta de reparação baseada na doação de dez apartamentos, o italiano exigiu 12 milhões de reais para retirar a ação e encerrar a briga. O pedido, mais uma vez, foi negado. "Para nós, ele é um estranho. Nunca nos mostrou um documento provando ser o dono dos terrenos", completa Rimes.
O fracasso dessa aproximação levou a uma nova investida. Desta vez, envolvendo figuras de relevo das finanças cariocas. Recém-saído da cadeia, o ex-banqueiro Alberto Cacciola ressurgiu na trama e apresentou-se como representante de Nicolotti. Nessa condição, fez uma visita ao escritório do acionista majoritário da João Fortes, Antônio José de Almeida Carneiro, o Bode.
Tratava-se de um encontro de velhos conhecidos. Assim como Cacciola, que teve a pena extinta há duas semanas, o controlador da João Fortes também foi dono de banco. Hoje seus negócios se espalham em uma miríade de participações em vários conglomerados, com patrimônio estimado em 1,1 bilhão de dólares (Bode, aliás, acaba de estrear na lista dos bilionários da revista americana Forbes).
Segundo testemunhas, além de ter se transformado em um acalorado bate-boca, a reunião acabou deixando para trás um rastro de objetos de decoração quebrados na sala, localizada em um elegante prédio do Leblon. Os dois negam o enfrentamento. "Eu o recebi em nome de uma antiga amizade, mas sou apenas um dos acionistas da João Fortes e não houve entendimento", diz Bode. Cacciola é menos diplomático. "Com a maior cara de pau, ele disse que todos os apartamentos estavam vendidos e não havia nada a fazer. É o que veremos no tribunal", afirma o ex-banqueiro, que pela ajuda ao amigo italiano receberá uma polpuda comissão. No processo judicial, inclusive, é citada a hipótese de que seja, desde o início, o verdadeiro dono da propriedade.
Das confusões que envolvem esses terrenos do Recreio, a briga João Fortes versus Cacciola é a que mais chama atenção. Mas não é a única. Além da ação envolvendo o condomínio Thai, existem outros nove processos contra falsários e sócios de construtoras que compraram lotes na área.
Embora tenha ouvido doze pessoas e produzido centenas de páginas de investigação, a polícia ainda não identificou o cérebro (ou cérebros) por trás do golpe, mas já tem algumas pistas. Nas transações, é recorrente o nome de um suposto corretor, Luciano José da Cruz Mata, 41 anos, foragido há pelo menos três.
Um processo contra ele foi arquivado recentemente porque a Justiça não conseguiu encontrá-lo. Outra figura que se repete no esquema é o gaúcho Rômulo Augusto Gonçalves de Oliveira, 62 anos. Dono de uma alentada ficha policial e com dois mandados de prisão por estelionato, ele se tornou proprietário de quatro lotes entre 2009 e 2011, falsificando assinaturas e comprovantes de residência. "Casos assim evidenciam sérios problemas nos cartórios. Ou eles têm sistemas falhos de registro ou estão diretamente envolvidos no esquema", diz a delegada Adriana Belém.
Infelizmente, casos semelhantes são muito comuns na Zona Oeste, região do Rio que cresce em ritmo asiático. Dos atuais 202 empreendimentos em construção na capital, nada menos que 127 são nessa área. Faz todo o sentido que mais da metade dos lançamentos aconteça por ali.
Afinal, é onde se concentra a maior quantidade de espaços disponíveis no município. Pela mesma razão, os grileiros encontram no triângulo Barra-Recreio-Jacarepaguá solo fértil para suas trapaças. Em 2010, foi descoberta uma quadrilha chefiada por um delegado da Polícia Civil.
O bando tinha contatos em vários cartórios e atuava no "ramo" há mais de duas décadas. Recentemente, a área em que a Confederação Brasileira de Futebol pretende construir um centro de treinamento e o museu do futebol foi alvo de disputa semelhante. Espera-se que episódios lamentáveis como esse não se repitam e, principalmente, não transformem o sonho da casa própria de famílias inocentes em pesadelo.