O então presidente João Goulart é recebido nos Estados Unidos pelo presidente John Kennedy: desde 1962 se discutia uma intervenção militar no Brasil (Arquivo Nacional/ABr)
Da Redação
Publicado em 31 de março de 2014 às 15h04.
Brasília - O golpe militar de 1964 foi um ato de militares brasileiros, apoiado por parte da sociedade e do empresariado do país.
Historiadores e testemunhas do golpe afirmam, no entanto, que um outro ator teve papel decisivo na ação dos militares.
A divulgação, pela Casa Branca, de gravações de conversas entre o ex-presidente John Kennedy e o então embaixador dos Estados Unidos (EUA) no Brasil, Lincoln Gordon, comprovam a preocupação da maior potência do mundo com o caminho que vinha sendo trilhado pelos brasileiros em sua incipiente democracia.
Os norte-americanos também se esforçaram no emprego de recursos financeiros para a promoção e o incentivo de iniciativas que tivessem o intuito de combater o comunismo no Brasil.
Os estudos agora dão como certo até mesmo o envio de uma frota naval dos Estados Unidos para apoiar o golpe, comprovando a estreita articulação entre militares brasileiros e o governo daquele país.
Professor da Universidade de Columbia, John Dingens confirma que os Estados Unidos participaram ativamente para minar o governo Jango.
"O registro histórico é claro", destaca. "Por causa de um medo exagerado de uma repetição da revolução cubana - um cenário que observadores objetivos consideraram ser extremamente improvável, beirando a paranoia geopolítica -, o embaixador e agentes da CIA [sigla em inglês para a Agência Central de Inteligência, do governo norte-americano], conspiraram e encorajaram militares brasileiros a depor o presidente eleito pelo povo brasileiro, João Goulart", avalia Dingens, que foi jornalista correspondente na América Latina na década de 1970 e escreveu o livro Operação Condor: Como Pinochet e Seus Aliados Trouxeram o Terrorismo para Três Continentes.
"A derrubada teve influência catastrófica em toda a América Latina. Como era óbvio, no momento em que os Estados Unidos apoiaram a destruição da democracia no Brasil, se seguiu uma onda de hostilidade e desconfiança contra os Estados Unidos em toda a região. Isto sustentou a credibilidade dos grupos revolucionários mais radicais - aqueles que, de fato, queriam repetir a experiência cubana em seus próprios países. Isto foi um obstáculo para o desenvolvimento da 'terceira via', ou seja, de alternativas pacíficas e democráticas para resolver a extrema pobreza e a desigualdade", diz.
Segundo o professor de história da Universidade de Brasília (UnB) Virgílio Arraes, o governo dos EUA, em plena Guerra Fria, tinha receio de que o maior país do Continente Sul-Americano seguisse o mesmo caminho de Cuba, onde forças lideradas por Fidel Castro destituíram o ditador Fulgencio Batista, em 1959, e instalaram um regime socialista que contou com o apoio da União Soviética.
O poderio militar da maior potência do mundo é considerado por ele, uma das principais razões para não ter havido reação do presidente João Goulart (Jango) ao golpe dado pelos militares brasileiros contra seu governo.
“Jango, provavelmente, dispunha de mais informações, e elas fizeram com que ele não demonstrasse tanta disposição em resistir”, avalia Arraes.
Para o professor, o conhecimento de que os EUA estavam enviando uma frota naval para a costa brasileira, informação confirmada pelo próprio embaixador Gordon anos depois, já seria suficiente para desestimular qualquer reação do governo constituído.
Para Arraes, o deslocamento da frota deve ter sido a maior movimentação naval no Hemisfério Sul desde a época da 2ª Guerra Mundial. “Se o Exército que derrotou as forças nazistas e as forças imperiais japonesas estivesse se deslocando para qualquer país da América do Sul, que tipo de esperança, do ponto de vista de luta, se poderia ter?”
A insatisfação norte-americana em relação aos rumos do país sob a presidência de João Goulart vinha do início de seu mandato. Algumas posições de Jango, como colocar em prática uma série de reformas, entre elas a reforma agrária, e as de seus aliados, como o governador do Rio Grande do Sul à época, Leonel Brizola, que desapropriou duas companhias norte-americanas (ITT, do setor de telecomunicações, e Amforp, de energia elétrica), aumentou a crença nas informações, passadas por Gordon, de que o país caminhava para adotar o regime comunista.
Desde 1962, o embaixador vinha tentando convencer o Departamento de Estado dos EUA de que Jango estava formulando um perigoso movimento de esquerda, estimulando o nacionalismo.
Em uma das conversas captadas pelo serviço de gravação instalado por Kennedy na Casa Branca, o presidente perguntou a Gordon se achava ser aconselhável uma intervenção militar no Brasil.
O episódio ocorreu em outubro de 1963, 46 dias antes do assassinato de Kennedy.
O embaixador incentivava o governo norte-americano a não poupar esforços para conter as transformações em curso.
Na opinião de Gordon, era fundamental organizar as forças políticas e militares para reduzir o poder de Goulart e, em um caso extremo, afastá-lo, já considerando o golpe. Após o assassinato de Kennedy, o embaixador Gordon continuou discutindo o assunto com o presidente Lyndon Johnson.
Com o argumento de garantir a democracia no Brasil, muito dinheiro foi aplicado pelo governo norte-americano em ações que, na realidade, visavam a frear a “ameaça comunista”. Uma delas foi a Aliança para o Progresso, um amplo programa de cooperação para o desenvolvimento na América Latina. Outra, mais ostensiva, foi a criação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) que produzia e difundia conteúdos anticomunistas para rádio, TV e jornais, além de mensagens em filmes e radionovelas, fazendo oposição ao governo João Goulart.
Em 1963, a ação do Ibad levou à instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Isso porque, em 1962, nas eleições legislativas e para o governo de 11 estados, o instituto captou recursos para a campanha de mais de uma centena de parlamentares contrários às reformas e ao governo de Jango.
A CPI comprovou que muitos documentos do Ibad foram queimados quando suas atividades começaram a ser investigadas e que suas fontes financeiras eram, prioritariamente, empresas norte-americanas.
Após a apuração da CPI, o presidente da República suspendeu as atividades do instituto por três meses, prorrogados por mais três.
No fim de 1963, o Ibad foi dissolvido pela Justiça.
A atuação norte-americana, no entanto, prosseguiu nos meses seguintes, até o golpe de 31 de março de 1964.