Para presidente do TSE, Bolsa Família "sem critério e sem limite temporal pode se configurar num sistema de compra de votos" (Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)
Marcelo Ribeiro
Publicado em 30 de outubro de 2016 às 08h30.
Última atualização em 30 de outubro de 2016 às 08h31.
Brasília - Em entrevista a EXAME.com, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral, afirmou ter incertezas sobre a necessidade de manter o ex-deputado e ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) preso neste momento.
"A Constituição diz que só pode ocorrer prisão de parlamentar em caso de flagrante delito. Portanto, o Supremo não poderia decretar a prisão de Cunha sem a devida análise. Nem sei se há razões para a prisão de Eduardo Cunha agora. O juiz Moro decretou, mas isso terá que ser examinado pelas instâncias competentes. A prisão preventiva não ocorre porque a gente acha que alguém merece ser preso", disse o ministro em entrevista a EXAME.com na última sexta-feira (28).
Ele também minimizou a crise entre os Poderes Legislativo e Judiciário e falou das irregularidades identificadas nas doações a campanhas do processo eleitoral de 2016.
Sobre as doações feitas por beneficiários do Bolsa Família, ele afirmou que o programa social “sem critério e sem limite temporal pode se configurar num sistema de compra de votos"
Veja os principais trechos da entrevista:
EXAME.com: Na última semana, assistimos a uma crise entre o presidente do Senado e o STF. A relação entre os Três poderes pode ficar ainda mais estremecida?
Gilmar Mendes: Não, muito pelo contrário. Acho que o Senado agiu bem ao recorrer da decisão ao Supremo. O STF, por meio da decisão do ministro Teori Zavascki, já deu uma resposta parcial. É dessa maneira que se encaminham as crises. Quando não há consenso, judicializa-se e isso se resolve. Acredito que o Senado agiu bem em colocar suas dúvidas perante o STF.
Quem tem mais razão no conflito entre a presidente do STF, Cármen Lúcia, e o presidente do Senado, Renan Calheiros?
Nós estamos vivendo momentos de muita tensão. É normal surgirem palavras mais duras e outras respondem. Isso é absolutamente normal. Depois disso, as pessoas continuam a trabalhar. Não se pode esquecer que a Constituição ressalta que os Poderes trabalhem de maneira harmônica.
O projeto de lei sobre o abuso de autoridade pode ser visto como uma tentativa de obstruir as investigações da Lava Jato?
Eu tenho repetido isso há muito tempo. O Brasil carece de uma nova lei de abuso de autoridade. A nossa última lei é de 1965. O país mudou muito desde então. É necessário que se discuta esse projeto. Diante de casos em que ficou comprovado excessos por parte de autoridades, confirmo meu juízo de que é necessária uma lei de abuso de autoridade mais rígida.
Não tem como objetivo de constranger as ações da Lava Jato. Quando vejo esse tipo de argumento, a mim me preocupa, porque significaria que a Lava Jato para operar precisa fazer abusos. Isso não é normal no Estado de Direito. O projeto tem que ser discutido para ser aperfeiçoado.
O juiz Sérgio Moro determinou a prisão do ex-deputado Eduardo Cunha com uma certa rapidez. O STF adota mais cautela. Há alguma intenção de dar mais celeridade à resolução de processos de políticos no Supremo?
Os processos no Supremo tem a devida celeridade. Foi o Supremo que julgou casos importantes de corrupção, como o mensalão. O Supremo é um colegiado. Nós ficamos vários meses julgando o mensalão e dedicados exclusivamente a isso. Não se pode comparar a atividade do Tribunal com o trabalho de um juiz que se dedica só a esse tema. O ministro Teori, que é o relator dos processos da Lava Jato, está cuidando desses casos e de tudo mais que lhe é atribuído. Ele não está fora da distribuição do Tribunal.
Mas o STF ainda não tem provas consistentes contra Cunha?
Ele era deputado. A Constituição diz que só pode ocorrer prisão de parlamentar em caso de flagrante delito. Portanto, o Supremo não poderia decretar a prisão de Cunha sem a devida análise. Nem sei se há razões para a prisão de Eduardo Cunha agora. O juiz Moro decretou, mas isso terá que ser examinado pelas instâncias competentes.
A prisão preventiva não ocorre porque a gente acha que alguém merece ser preso. Ela tem pressupostos como a ameaça de fuga, obstrução de justiça. São pressupostos muito claros na Legislação.
Eu avalio a Lava Jato como uma operação muito digna e adequada. É preciso ressaltar que foi a responsável por revelar as entranhas do sistema política brasileiro. A decisão de Moro de prender Cunha será examinada.
Falando sobre eleições, o senhor se surpreendeu com o número de irregularidades nas campanhas eleitorais de 2016?
Já se esperava isso diante do controle sobre o financiamento das campanhas. Ainda não se tem uma visão precisa sobre tudo, mas há indícios que apontam que houve um número elevado de irregularidades. A prática do caixa 2, por exemplo, ficou evidente.
O senhor destacaria algum outro tipo de irregularidade?
Eu já havia falado que a proibição de doações corporativas iria levar à produção de um laranjal. De certa forma, isso deve ter ocorrido. CPFs que foram utilizados para fazer doação ocorreram em grande massa e essa deve ser a principal irregularidade detectada em 2016.
O fenômeno do caixa 2 também apareceu. Os limites de gastos foram muito estritos. Um candidato a vereador de 80% dos nossos municípios não podia aportar mais de R$ 10,8 mil em suas campanhas. É muito difícil fazer campanha com esse recurso limitado. É muito provável que tenha havido gastos que não foram incluídos na prestação de contas das campanhas.
Esse tipo de determinação não acaba beneficiando os candidatos que têm mais recursos?
O modelo atual que permitiu o autofinanciamento certamente contribuiu para aqueles candidatos que têm bastante recurso e que podem financiar a própria campanha.
Sobre as doações de beneficiários do Bolsa Família…
Isso indica o uso de CPFs de pessoas para a doação. O dinheiro já existia e se procurou CPFs disponíveis para se fazer doações. É isso que deve ter acontecido.
Recentemente, o senhor teria dito que o Bolsa Família é uma espécie de compra de voto institucionalizada. O senhor realmente acredita nisso?
Eu não disse exatamente isso. O que eu disse é que o Bolsa Família sem critério e sem limite temporal pode se configurar num sistema de compra de votos.
De que maneira o TSE pretende trabalhar para que esse número de irregularidades diminua nas próximas eleições?
Nós aprimoramos muito o sistema. Com a mudança da legislação, a apresentação das contas prévias se dá a cada 72 horas. Esse é o grande legado da eleição para o TSE. Isso só é possível graças à cooperação da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União.
Mas como o TSE trabalhará para aprimorar o sistema?
Vamos ter que discutir para fazermos um balanço sobre o que aprendemos com esse processo eleitoral. Depois disso, vamos apresentar sugestões de mudanças de legislação ao Congresso.
Que tipos de mudanças o senhor irá sugerir ao Congresso?
Uma das mudanças que estamos sugerindo e que está sendo bem recebida é que precisamos de mais tempo para avaliar as candidaturas. A impugnação de algumas candidaturas ainda não chegou ao TSE. Deveria haver um prazo anterior para se fazer o registro das candidaturas. Dessa maneira, seria possível concluir o processo de impugnação antes das eleições.
O senhor acha que a reforma política pode representar um retrocesso no sistema eleitoral?
Eu concordo com alguns pontos que estão sendo apresentados no Congresso. Acho que tem que ter uma cláusula de barreira, que limite o número de partidos no Congresso Nacional. Eu concordo que é necessário acabar com as coligações proporcionais.
Acho que é preciso rediscutir o sistema de financiamento, mas não é possível fazê-lo se a gente não sabe o sistema eleitoral adotado. Não deveríamos ter discutido mudanças no sistema de financiamento descolado da discussão sobre o sistema eleitoral. Esse foi um dos nossos erros mais marcantes. É fundamental que os temas voltem a ser debatidos.
Então, o financiamento de campanhas por empresas pode voltar a ser permitido?
Há várias ideias em circulação. Alguns têm falado que a proibição de doação deveria se restringir às empresas que doam para todas as campanhas, ou seja, as empresas deveriam escolher apenas uma das candidaturas para colaborar. Outros dizem que deveria ser criado um fundo onde haveria a doação para um partido e não para um candidato. Há muitas ideias que poderiam ser avaliadas.
O grande problema que ocorreu nos últimos anos tem a ver com a manipulação das doações. Quando alguém associou o serviço na Petrobras e disse que aquilo se traduziria numa doação de campanha, o que configura uma propina legal, distorceu por completo o sistema e inclusive trouxe problema para a Justiça Eleitoral, já que se tornou um local de lavagem de dinheiro.
A falta de teto também era um problema. Determinadas empresas chegaram a doar para campanhas R$ 500 milhões em apenas um processo eleitoral. Isso é demais. É preciso ter um teto. As doações precisam ter um limite se as doações de empresas voltarem a ser admitidas.
O senhor pretende participar ativamente de uma eventual reforma eleitoral?
Nós vamos participar. Não é de nossa competência formular leis sobre o tema, mas, considerando a experiência que o TSE possui, faremos sugestões e apresentaremos considerações, inclusive em relação às experiências colhidas nessas eleições.
O senhor acredita que a prática do caixa 2 vai sair de moda?
Agora se fala na criminalização. O caixa 2 tem múltiplas razões. Hoje, do ponto de vista meramente legal, não haveria mais razão para o caixa 2. O receptor não sofre nenhum constrangimento, nenhuma sanção. É colocado dinheiro na sua conta, você declara à Justiça Eleitoral e tudo fica dentro da normalidade.
A pressão que determinada facção no poder pode exercer contra a doação ao candidato adversário pode ser um estímulo ao caixa 2. Tem muitas razões para o caixa 2. Em 2014, muitos disseram que isso não acontecia mais. A Lava Jato mostra que não acabou ao sinalizar que nas últimas campanhas houve o uso de dinheiro ilícito.
Falando em 2014, a decisão sobre a cassação da chapa Dilma-Temer ficou para 2017?
Ainda não temos nenhuma definição. Dependemos do encerramento do trabalho que se está sendo feito no tribunal pelo relator Herman Benjamim. Ele está ouvindo as pessoas e produzindo processos. Quando ele encerrar essa parte e houver pronunciamento de todas as partes envolvidas é que nós vamos ter condições de saber se iniciaremos o processo ainda esse ano ou apenas no ano que vem.
Mas o ministro Herman estaria inclinado a pedir a cassação da chapa?
Vamos aguardar. Ainda é muito cedo para falarmos disso.
O senhor pretende dar uma posição definitiva sobre esse processo antes da mudança de ministros do TSE prevista para o ano que vem?
Precisamos aguardar. Preciso julgar antes de condenar. Primeiro é preciso saber quando o projeto estará em condições de ser pautado. A partir daí é que nós vamos poder emitir qualquer outro juízo do momento de julgamento.
O senhor se incomoda quando dizem que sua proximidade com o presidente Michel Temer impediria que o senhor fosse neutro em sua decisão?
Isso é uma coagem. Se nós fôssemos levar isso em conta, o STF não funcionaria. O Supremo está composto basicamente por pessoas que foram indicadas pelo lulopetismo.