Repórter de Brasil e Economia
Publicado em 15 de outubro de 2024 às 17h42.
Última atualização em 16 de outubro de 2024 às 11h23.
Após uma chuva e vendaval recorde atingirem a cidade de São Paulo e municípios da região metropolitana na última sexta-feira, 11, e deixarem mais de 2 milhões de pessoas sem energia elétrica, a discussão em torno da continuidade da concessão da Enel, empresa responsável pela distribuição de energia na capital e em mais 23 cidades, voltou aos holofotes.
Nesta terça, mais de 200 mil consumidores seguem há quase 96 horas sem luz.
Especialistas ouvidos pela EXAME apontam que há diversas possibilidades jurídicas e políticas para essa nova crise: desde a decretação da caducidade — quando uma das partes deixa de cumprir o contrato e gera prejuízo, até o rompimento unilateral, chamado de encampação — a um processo de pressão política que possa levar a empresa a vender sua concessão, como aconteceu com a Enel em Goiás.
A multinacional italiana é acusada de não responder a crise à altura, uma vez que essa não é a primeira vez que uma forte tempestade deixa a capital paulista e cidades da grande São Paulo sem energia. Questionada sobre a continuidade ou não do controle e as pressões em relação à resposta a falta de luz em São Paulo, a Enel ainda não respondeu o pedido da reportagem. O espaço segue aberto.
Desde que o apagão ocorreu, a empresa afirma está investindo cerca de R$ 6,2 bilhões em São Paulo de 2024 a 2026, além de estar "fortalecendo e modernizando as redes". A companhia promete até março de 2025 contratar 1,2 mil eletricistas.
São Paulo passou por dois apagões, um em novembro de 2023 e outro no início de março, que deixaram milhares de moradores de São Paulo sem luz por mais de 7 dias, nos dois casos.
Em abril, o Ministério de Minas e Energia (MME) pediu à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a abertura de um processo administrativo disciplinar contra a Enel. A ação serve para apurar possíveis transgressões reiteradas, que podem resultar no rompimento ou renegociação dos contratos.
O processo ainda corre na Aneel, que não respondeu ao pedido da reportagem sobre a situação do procedimento. A agência afirma que já aplicou R$ 320 milhões em multa contra a empresa. Em relação ao evento de novembro de 2023, a multa aplicada foi de R$ 165 milhões (maior multa já aplicada pela ANEEL a uma distribuidora). A punição foi suspensa por decisão judicial.
Nesse ínterim, a administração municipal e a estadual pediram algumas vezes o rompimento do contrato da Enel na cidade. O discurso ganhou ainda mais força em meio ao segundo turno das eleições na cidade de São Paulo, que colocam o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o deputado Guilherme Boulos (PSOL), apoiado pelo governo federal, em rota de choque pelo assunto.
Mas o que acontece caso o processo aberto pelo governo federal resulte em rompimento de contrato com a Enel?
Hoje, as concessões de distribuição de energia são de competência federal. A regulação e a fiscalização do setor ficam a cargo da Aneel e do MME. Por isso, o assunto divide as atenções dos governos federal, estadual e municipal.
O primeiro ponto destacado por especialistas é que o processo de um possível rompimento de contrato não será simples e nem rápido.
Uma hipótese é a de quebrar o contrato por caducidade, quando uma das partes deixa de cumprir o que consta em contrato. Segundo o ministro Alexandre Silveira, nunca um processo de caducidade foi realizado no Brasil. Nesse caso, uma série de ritos precisam ser cumpridos.
“A Aneel deve realizar um procedimento para apuração de responsabilidade. Ou seja, verificar, mediante procedimento, com ampla defesa para a Enel, se ela está faltando com os compromissos previstos no contrato de concessão", diz Rafael Marinangelo, pós-doutor na USP e sócio da área de Infraestrutura e Processos Licitatórios da RGSA Advogados. "Esse procedimento tem uma sequência de atos que você não pode suprimir.”
Edvaldo Santana, ex-diretor geral da Aneel e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que o rito é demorado, pois passa por um primeiro momento de fiscalização, a emissão de uma nota técnica e uma série de documentos que vão para a superintendência da agência, que depois emite a autorização de suspensão do contrato. Nesse processo, a empresa tem várias oportunidades de ampla defesa.
“Quando eu era diretor da Enel, houve o processo de caducidade contra a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). Logo que entrei, declaramos a suspensão do contrato, mas demorou mais de três, quatro anos para, no final, o ministério declarar a federalização, e não a caducidade", explica.
O processo administrativo contra a CEA começou em 2005 e se arrastou até junho de 2007, quando a Aneel propôs a caducidade, que não foi acatada pelo MME. A empresa se manteve estatal até 2021, quando o controle foi repassado ao grupo Equatorial Energia, que venceu o leilão de concessão da CEA.
A Lei de Concessões estipula diversas hipóteses para a declaração de caducidade de uma concessão, como prestação inadequada de serviço com base em normas e critérios definidores, descumprimento de cláusulas contratuais e não cumprimento de penalidades impostas no prazo.
Segundo a Aneel, a forma utilizada para medir a qualidade do serviço das distribuidoras de energia é pelas frequências (FEC) e duração (DEC) das interrupções de fornecimento de energia.
Em 2022, o DEC da Enel foi de 6,36 horas por unidade consumidora, abaixo do limite de 7,14 horas.
Já em 2023, a duração de interrupções teve um leve aumento, passando para 6,77 horas por unidade consumidora, com limite de 7,11.
A frequência de interrupções não teve variação significativa entre 2022 e 2023 e se manteve dentro do limite aceito pela agência.
O relatório sobre desempenho das distribuidoras de energia elétrica em 2023, elaborado pela Aneel e divulgado no dia 15 de março de 2024, mostrou que a Enel SP caiu no ranking de continuidade do fornecimento de energia elétrica, da 19ª para a 21ª posição. O indicador leva em consideração a duração e a frequência das interrupções em relação ao limite estabelecido pela Aneel.
Caso a agência reguladora entenda que a Enel está descumprindo alguma regra, seria necessário dar um prazo para que a distribuidora readeque as irregularidades apontadas em processo administrativo antes de recomendar a caducidade, aponta Marinangelo, da Emerenciano, Baggio & Associados Advogados.
Após esse processo, a Aneel precisaria aprovar uma manifestação favorável à revogação do contrato da concessionária e enviar as documentações para o Ministério de Minas e Energia. A pasta tem a decisão final sobre romper ou não o contrato.
Além do rompimento por caducidade, Marinangelo, da RGSA Advogados, avalia que o governo teria a opção de encerrar o contrato por um instrumento chamado de encampação, que é quando o poder público retoma a prestação do serviço por motivo de interesse público.
Esse ato não pode ser negado pela concessionária, mas ela teria direto a uma indenização.
Marinangelo afirma ainda que o procedimento seria traumático e teria altos custos aos cofres públicos.
“A consequência disso é que o governo teria que pagar a amortização dos investimentos realizados mais o lucro prospectado pelo concessionário, porque não deu motivo para a rescisão do contrato", diz o advogado.
Segundo os especialistas, caso o processo avance, o governo teria que declarar por decreto a caducidade ou a encampação da concessão, como determina a lei de concessões.
Após isso, a União teria três opções: assumir a prestação do serviço; realizar um contrato provisório com uma empresa com capacidade para atender a população; ou manter o atual concessionário — no caso, a Enel — na prestação do serviço até uma nova licitação.
Na prática, o governo teria que assumir a concessão ou escolher uma empresa de forma emergencial para assumir o serviço até um novo leilão.
"Todas as possibilidades são traumáticas. E o ponto que fica é qual seria o efeito prático. O que ia mudar no atendimento ao cliente no dia seguinte com uma intervenção ou uma caducidade. É preciso pensar como essas medidas podem ou não afetar a população", diz Santana, ex-Aneel.
Marinangelo aponta também que já existe toda uma estrutura engrenada da Enel para distribuir a energia para uma cidade como São Paulo, mesmo que o serviço esteja abaixo do que os entes públicos e a população deseja.
"Para alguém assumir uma concessão tão complexa como essa levaria um tempo. Não será do dia para a noite", explica Marinangelo.
O caso levou a uma convergência de adversários políticos, que parecem convencidos da necessidade de romper o contrato com a Enel ou impedir a renovação da concessão, que vence em 2028.
De um lado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), Nunes e outros prefeitos de cidades da grande São Paulo se mobilizam para "tirar" a empresa da concessão de energia da região. Do outro lado, Boulos e o ministro Alexandre Silveira também apontam que a Enel não tem condições de seguir com a concessão.
A vontade política, porém, não é suficiente para concretizar o fato, mas um paralelo recente da história mostra que a pressão pode ter algum efeito. "Hoje é mais fácil acontecer em São Paulo o que ocorreu em Goiás do que o governo conseguir, de fato, confirmar o rito de caducidade", avalia Santana.
Em 2017, a Enel assumiu a distribuição de energia em Goiás, após adquirir a antiga Companhia Energética de Goiás (Celg) por R$ 2,1 bilhões. Após recorrentes interrupções no serviço, o governador do estado, Ronaldo Caiado (União), defendeu a troca da concessionária por outra empresa.
Caiado mobilizou ações contra a empresa, inclusive na Procuradoria Geral da República, pedidos no Ministério de Minas e Energia e em diversas instâncias. A Enel afirmava na época que estava cumprindo o contrato.
Em meio à pressão, em 2022, a Enel vendeu suas operações para o grupo Equatorial Energia por R$ 1,6 bilhão. Além da gestão dos serviços, a Equatorial assumiu uma dívida de R$ 5,7 bilhões, deixada pela distribuidora.
"O governo Caiado pressionava muito politicamente. A empresa, entre aspas, desistiu. Ela tinha menos de dois anos na concessão e já teve que suportar uma pressão danada", diz o ex-diretor geral da Aneel.
Caso a Enel não venda a sua operação, existe a possibilidade de a empresa não acenar para a renovar da concessão.
Segundo decreto publicado em junho deste ano, as atuais concessionárias interessadas em prorrogar suas concessões deverão demonstrar a prestação adequada do serviço público, que será aferida por dados de fornecimento de energia elétrica e gestão econômico-financeira.
As concessões que não forem prorrogadas sob as novas regras deverão ser objeto de licitação para seleção de nova concessionária.
Para além da quebra de contrato, a Aneel prevê a aplicação de multas ou a intervenção na empresa — isto é, a Aneel assumir a operação do serviço por tempo determinado.
Questionados sobre um paralelo de rompimento de caducidade em outros contratos de distribuição energia no Brasil, os especialistas afirmaram não haver um exemplo igual. Mas citaram o caso da intervenção da Aneel na Companhia Energética do Maranhão (Cemar) em 2002.
Na época, a concessionária maranhense enfrentava dificuldades para saldar compromissos com bancos e fornecedores e não prestava o serviço de forma adequada à população.
"O serviço estava muito ruim, com índice de interrupção ou falta de fornecimento. Então a Aneel decidiu intervir", diz Rosi Costa Barros, sócia da área de Energia e Recursos Naturais do Demarest Advogados. "A agência entrou para assegurar que a prestação de serviço fosse feita." A especialsita aponta, porém, que não vê esse cenário se repetir na Enel.
Em 2019, a Equatorial assumiu a empresa após vencer o leilão e obter todas as autorizações necessárias para iniciar as atividades no estado.
A intervenção administrativa durava 180 dias, mas poderia ser prorrogada em mais de uma ocasião. Hoje, a medida pode durar até um ano, prorrogável uma vez, por mais dois anos, de acordo com critérios da Aneel.