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Fazendeiros do Pará tentam interromper debate sobre Amazônia

Ruralistas tentaram tumultuar encontro que reuniu lideranças de povos da floresta, cientistas e ativistas em Altamira para debater os problemas da Amazônia

Cacique Raoni Metuktire em sua fala: “a floresta, o rio e o igarapé são nossa vida” (Anderson Souza/Agência Pública)

Cacique Raoni Metuktire em sua fala: “a floresta, o rio e o igarapé são nossa vida” (Anderson Souza/Agência Pública)

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Clara Cerioni

Publicado em 19 de novembro de 2019 às 15h52.

Última atualização em 19 de novembro de 2019 às 15h58.

Um grupo de produtores rurais tentou tumultuar a mesa de abertura do evento “Amazônia, Centro do Mundo”, na manhã de ontem (18), em Altamira, no Pará. Após pedirem que o hino nacional fosse cantado antes do início das discussões, houve empurra-empurra entre eles e os participantes na reunião, em sua maioria indígenas, ribeirinhos, camponeses e membros de movimentos sociais do Xingu.

Segundo dados do Inpe divulgados ontem, o desmatamento da Amazônia atingiu a maior taxa desde 2008 – com 9.762 quilômetros quadrados de vegetação nativa desmatados entre agosto de 2018 e julho de 2019, uma alta de cerca de 30% em relação ao período anterior.

A tenda montada na quadra de um dos campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) em Altamira estava lotada para a abertura do encontro, que, por dois dias – ontem e hoje, terça-feira (19) –, discute os problemas mais urgentes que atingem a Amazônia – como a alta no desmatamento, grandes obras de infraestrutura e queimadas ilegais – e as mudanças climáticas em escala global.

Quando as falas estavam prestes a começar, depois que indígenas Kaiapó haviam se apresentado, alguns dos fazendeiros se dirigiram à mesa, interromperam o evento e pediram, aos gritos, a reprodução do hino nacional. Foi então que pessoas próximas tentaram afastá-los e se deu a confusão.

Passados alguns minutos, os ânimos se acalmaram, o hino foi cantado, e a programação, iniciada. No entanto, o grupo, formado por representantes de sindicatos de produtores rurais da região, continuou com as intervenções ao longo de todo o debate, gritando “Amazônia, centro do Brasil”, em contraponto ao nome do encontro, e vaiando sempre que uma crítica ao governo Bolsonaro era feita. Depois que ocorreu o tumulto, as polícias militar e federal foram ao local para acompanhar o evento.

No momento em que foram citados ao microfone nomes de vítimas da violência no campo, foi levantada uma faixa com os dizeres “quem matou o produtor Luciano Fernandes?”. Fernandes é irmão de um dos fazendeiros que lá estavam, Silvério Albano Fernandes, do Sindicato dos Produtores Rurais de Anapu, vizinho a Altamira.

Embora, logo após o assassinato do irmão, em maio de 2018, Silvério tenha gravado um vídeo no qual culpa “invasores de terra” pelo ocorrido, as investigações apontam que a morte de Luciano se deu por conflitos envolvendo a exploração de madeira.

No ano passado, Silvério também se envolveu com a prisão de José Amaro Lopes de Souza, o padre Amaro, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e sucessor da missionária norte-americana Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005 em Anapu – a irmã Dorothy, como era conhecida, lutava pela regularização do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, no mesmo município.

De acordo com a polícia, o inquérito contra Amaro foi motivado por denúncia de Silvério, que o acusava de liderar uma organização criminosa que teria tentado ocupar sua fazenda.

A família Fernandes já foi citada nas investigações pela morte de Dorothy: a participação de Laudelino Délio Fernandes, irmão de Luciano e Silvério, chegou a ser apurada, mas ele não foi responsabilizado.

As investigações apontam que o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, um dos condenados pela morte de Dorothy, se escondeu na casa de Laudelino após o crime. Em 2002, Silvério, por sua vez, foi acusado pela própria Dorothy de tê-la ameaçado – a missionária afirmou que, em setembro daquele ano, o fazendeiro havia lhe dito que ninguém invadisse suas terras ou “teria sangue até a canela”.

Depois que Jair Bolsonaro ganhou a eleição de 2018, Silvério foi cotado para assumir a coordenação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na região do Xingu, o que não chegou a se concretizar. Ex-vice-prefeito de Altamira, ele tentou concorrer a deputado estadual pelo Podemos no ano passado, mas teve a candidatura indeferida por ausência de quitação eleitoral.

Além de Silvério, o comboio contava com a presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira (Siralta), Maria Augusta da Silva Neta, que foi ao evento para “dizer o que nós queremos para a Amazônia”.

Ela conta que a ida do grupo ao campus da UFPA foi articulada pelas redes sociais. “Temos uma meia dúzia que decide por nós aqui e sempre ficamos calados, mas estamos num momento de mudança”, destacou a dirigente, que pede “gestão fundiária” na região.

O antropólogo Edward Luz, perfilado pela Agência Pública em 2015, também estava lá. Expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2013, Luz declarou à reportagem ser consultor da Federação da Agricultura e Agropecuária do Pará (Faepa) e chegou a ser cotado para assumir um cargo na Fundação Nacional do Índio, a Funai, no início do governo Bolsonaro, o que também não deu certo.

Ele é conhecido pela elaboração de laudos de contestação a áreas da União destinadas a populações indígenas e comunidades tradicionais, cujos critérios técnicos contesta. O antropólogo disse à Pública que os produtores rurais estão ali “lutando contra o monopólio do discurso, sobretudo o monopólio do discurso do bem”.

A análise dos organizadores do evento é de que, apesar do tumulto, a mesa de abertura foi “vitoriosa”. “Aquelas pessoas que vieram na perspectiva de estragar com o nosso encontro, a avaliação dos movimentos sociais, de todos que estão organizando o evento, é que eles foram derrotados e sempre irão ser”, ressaltou Antônia Martins, da Fundação Viver, Produzir e Preservar, com sede em Altamira, uma das organizações articuladoras.

“Nesse momento, o que importa para todos nós, movimentos sociais daqui e de lá, é que é preciso ter essa aliança global em defesa da Amazônia e de seus povos, é muito importante que essa aliança fortaleça sobretudo as pessoas que moram aqui, elas são os verdadeiros guardiões da floresta.”

“Façam seu trabalho, que eu faço o meu”

O grupo contrário não conseguiu inibir o trabalho da mesa de abertura, que transcorreu por cerca de três horas. Indígenas, mulheres negras, pescadores, ribeirinhos, lideranças de movimentos sociais – como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) –, cientistas expuseram suas posições e contaram histórias, de diferentes pontos de vista, sobre o que acontece na Amazônia.

Um dos momentos mais esperados foi o discurso do cacique Kaiapó Raoni Metuktire, que pediu paz: “que não venha a violência para a população indígena e para os demais que defendem a floresta. “Quero dizer para os não indígenas, os empresários, madeireiros, garimpeiros e grileiros que respeitem as terras indígenas e os indígenas. Porque a floresta, o rio e o igarapé são nossa vida”, disse em sua língua nativa, ao pegar o microfone – há anos ele escolheu se comunicar assim, em vez de usar o português.

“Vocês estão falando que a Amazônia é do Brasil, e realmente é do Brasil. Então, que vocês, não indígenas, parem com isso e façam seu trabalho, que eu faço o meu para defender a Amazônia”, finalizou Raoni, ovacionado pelo público que o assistia.

Maria Leusa Kobo, do povo Munduruku, que vive no Pará, também foi aplaudida ao dizer que entende o desenvolvimento não como destruição, mas como preservação dos rios e florestas. “A gente vê, no meio da gente aqui, os nossos inimigos que querem nos matar. Eles vêm nos matando, não têm vergonha de nos matar, por isso a gente não tem vergonha. Nós defendemos o que é deles, defendemos o que é nosso. O rio é nosso, o território é nosso, a Amazônia é nossa”, declarou.

A professora titular aposentada da USP e emérita da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha, um dos grandes nomes da Antropologia no Brasil, ressaltou que sem os povos indígenas e quilombolas “não há floresta”.

“Sabemos que a Amazônia é ocupada por povos indígenas há muitos séculos, muito milênios, e que eles souberam estar aqui nesta floresta e enriquecê-la em vez de destruí-la. Souberam e sabem viver até hoje de um modo que respeita, não só os direitos dos humanos, mas de todos os seres que habitam também a floresta, inclusive os rios, os bichos, as plantas. Esse é um modo de viver que temos que aprender”, defendeu.

O “Amazônia, Centro do Mundo” é resultado da articulação de mais de 25 organizações, dentre as quais coletivos do movimento negro, mulheres, indígenas, associações de moradores de reservas extrativistas, Prelazia do Xingu, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e Instituto Socioambiental. Nesta terça-feira (19), ao fim do encontro, será lido um manifesto em defesa da Amazônia e do planeta.

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.

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