Canabidiol: PL em tramitação no Congresso discute regulamentação do mercado medicinal no Brasil (Tinnakorn Jorruang/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 24 de maio de 2021 às 06h00.
Última atualização em 24 de maio de 2021 às 11h21.
Poucas coisas no Brasil de 2021 atingem um grande consenso. Mas o uso da maconha e seus derivados em tratamentos médicos caminha para ser considerado um deles. Em nova pesquisa EXAME/IDEIA, 78% dos brasileiros disseram ser favoráveis ao uso de cannabis para fins medicinais e 77% afirmaram que usariam esse tipo de tratamento se receitado por um médico.
A pesquisa foi realizada nacionalmente entre os dias 19 e 20 de maio, como parte do projeto que une Exame Invest PRO, braço de análise de investimentos da EXAME, e o IDEIA, instituto de pesquisa especializado em opinião pública. Foram ouvidas 1.243 pessoas, em entrevistas feitas por telefone, com ligações tanto para fixos residenciais quanto para celulares. Clique aqui para ler o relatório completo.
A aprovação alta ao tema se mantém mesmo entre frentes opostas do espectro político. No grupo que avalia a gestão do presidente Jair Bolsonaro como ótima/boa (24% do total) ou regular (22%), uma fatia de 73% e 78% dos respondentes, respectivamente, disse ser a favor do uso de cannabis para fins medicinais. Parcela parecida disse que usaria um medicamento do tipo se prescrito por médicos.
Entre os que consideram a gestão Bolsonaro ruim ou péssima (50%), o percentual favorável ao uso medicinal da maconha foi ainda maior, de 82%.
“O dado sobre canabidiol mostra que temos uma sociedade que majoritariamente apoia o tema, quando questionada sobre o uso medicinal especificamente”, diz o pesquisador Maurício Moura, fundador e presidente do IDEIA.
O debate deve se intensificar no Brasil nos próximos meses, em meio à discussão na Câmara do PL 399/2015, que autoriza a produção nacional de medicamentos à base de cannabis. Com oposição declarada do presidente Jair Bolsonaro, a comissão especial que discute o PL chegou a ter agressão entre parlamentares na última terça-feira, 18 — quando o deputado Diego Garcia (Podemos-PR) partiu para cima do presidente do colegiado, Paulo Teixeira (PT-SP).
Segundo a pesquisa EXAME/IDEIA, a maior aprovação ao uso de cannabis medicinal está na faixa da população com renda superior a cinco salários mínimos (90% disse ser favorável) e com ensino superior (86%). A menor aprovação está nos grupos de menor renda e escolaridade, embora ainda elevada: de 74% entre quem ganha até um salário-mínimo e 71% entre quem cursou até o ensino fundamental.
A aprovação acima de 70% ao tema se repete tanto entre católicos quanto entre evangélicos, embora seja especialmente mais alta (92%) para os que se disseram sem religião. Não houve diferença significativa nas respostas entre os entrevistados que moram no interior, no litoral ou em regiões metropolitanas.
“A pesquisa mostra que a cannabis para fins medicinais já é uma ‘não polêmica’”, diz Tarso Araujo, diretor-executivo na Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann). "Chegamos a um certo grau de conscientização e informação que é suficiente para derrubar o preconceito histórico."
A discussão no Brasil será observada pelas empresas do setor em todo o mundo. A BRCann estima que, mesmo com a regulação ainda no início, o mercado de cannabis medicinal chegou a 150 milhões de reais no país em 2020. Projeções apontam que o Brasil pode movimentar 4,7 bilhões de reais com novas regras de regulamentação, segundo a The Green Hub e New Frontier Data.
Opções de tratamentos com cannabis têm se mostrado eficazes para pacientes com doenças como epilepsia, ansiedade, dor crônica e autismo, entre outros. Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autoriza que pacientes com receita médica possam importar os medicamentos. Outra regulação da Anvisa autorizou venda em farmácias, que começou a partir de maio de 2020.
Mas com a necessidade de importação dos produtos, a oferta ainda é baixa, e o tratamento com cannabis para alguns meses pode passar de 2.000 reais. Na outra ponta, os preços começam a cair diante do avanço do mercado.
Um levantamento da Dr. Cannabis, marketplace que conecta médicos especializados no tema a pacientes, aponta que já é possível comprar remédio suficiente para três meses, incluindo consulta médica e frete, por pouco mais de 600 reais. O principal motivo é o crescimento do mercado no Brasil, diz Viviane Sedola, fundadora e presidente da startup. “O que explica a queda do preço é a lei da oferta e demanda: com mais empresas vendendo, há mais concorrência. Melhor para o paciente”, diz.
Há ainda outras barreiras. Encontrar médicos que tenham medicamentos de cannabis entre seu rol de opções é custoso, com menos de 0,2% dos médicos brasileiros fazendo prescrições. A Dr. Cannabis calcula que o valor médio da consulta com médico especializado caiu mais de 30% desde o ano passado, mas o preço médio da consulta ainda é de 445 reais. Sedola avalia que, com mais médicos se informando sobre o tema, a disponibilidade tende a crescer. “Em breve, acredito que não haverá médicos necessariamente especialistas na prescrição de remédios de cannabis, mas sim entendendo as possibilidades dentro de sua própria área”, diz.
O debate diz respeito não só a medicamentos, mas ao uso da cannabis para fins industriais — no limite, até plástico pode ser fabricado com a planta. A indústria de cosméticos também usa insumos como o cânhamo presente na cannabis. O mercado ainda pode incluir, além dos fornecedores diretos, uma cadeia econômica ao redor dos produtos, de embalagens a logística.
Uma série de países têm regulamentado o uso de maconha para fins medicinais, científicos e industriais nos últimos anos. Na América Latina, países como Colômbia, Equador e México têm há alguns anos autorização para uso medicinal, assim como países europeus e quase todos os estados nos Estados Unidos. Já Canadá, Uruguai, Argentina e alguns estados americanos (sendo Nova York o mais recente deles) têm leis mais abrangentes, que incluem plantio e uso recreativo.
Na comparação com outras leis ao redor do mundo, o PL em discussão no Congresso, com relatoria do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), é taxado de conservador por alguns ativistas do tema, por não tratar, por exemplo, da autorização de que pacientes possam plantar em casa. As exigências também são altas para verificar a taxa de THC (um dos componentes da planta) presentes nos remédios, o que exclui parte das associações de pacientes e deixará o mercado restrito a empresas, o que pode fazer os preços seguirem altos se a concorrência não aumentar.
Devido às mudanças mais amenas, havia um quase consenso para aprovar o texto, segundo a EXAME apurou. A maré mudou nas últimas semanas, quando líderes partidários contrários ao tema passaram a mudar os membros indicados para a comissão. Houve ao menos sete alterações até agora, e o resultado da votação na comissão passou a ser imprevisível.
O deputado e médico Eduardo Costa (PTB-PA), membro da comissão e que fez discurso favorável ao PL, chegou a ser ameaçado de expulsão do partido pelo presidente da legenda, Roberto Jefferson.
O texto pode ainda ser alvo de destaques que o alterem. Uma comissão geral com todos os deputados na Câmara foi marcada para quarta-feira, 26, de modo a disseminar informações sobre o tema. Mesmo se aprovado na comissão, o projeto deve ser contestado por recurso, o que o levará a plenário, precisando da aprovação da maioria dos 513 deputados.
"Há congressistas de todos os partidos que são favoráveis ao projeto, entenderam a importância para os pacientes no Brasil e que é possível produzir de forma segura", diz Ducci. O relator avalia que o texto tem condições de ser aprovado em plenário e no Senado caso passe na comissão, mas diz que seu relatório tem sido alvo de notícias falsas que o acusam de liberar a maconha no Brasil.
"O PL não libera nada: o texto deixa claro que o próprio governo, por meio da Anvisa e do Ministério da Agricultura, terá de aprovar as solicitações feitas e controlar o que está sendo produzido. Não se trata de venda de produto para fumar ou auto cultivo”, defende o deputado.
Caso o projeto vá a plenário, fontes ouvidas pela EXAME no ano passado viam com maior otimismo a possibilidade de o projeto ser pautado rapidamente para votação na gestão Rodrigo Maia (DEM-RJ). O atual presidente, Arthur Lira (PP-AL), ainda não se manifestou sobre o tema, mas a avaliação agora é que a votação no Congresso só seja concluída em 2022, ou ainda após as eleições. Depois disso, seriam ainda ao menos quatro anos para que o mercado se estabeleça, a julgar por exemplos como o da Colômbia.
A discussão, portanto, está só no começo. Mas a esperança da maioria dos brasileiros é que se faça com base na ciência e nas melhores práticas mundo afora — e com mais civilidade do que as cenas vistas na última semana.
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