Sydney Possuelo é indigenista e etnógrafo (UFRR/Reprodução)
João Pedro Caleiro
Publicado em 8 de setembro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 8 de setembro de 2019 às 08h00.
Aos 79 anos de idade, 42 deles embrenhado na floresta amazônica, o sertanista, indigenista e etnógrafo Sydney Possuelo arrisca uma explicação para o que chama de “aversão” do presidente Jair Bolsonaro aos indígenas.
“Ele é influenciado pela Escola do Estado-Maior do Exército (Emfa) do Rio de Janeiro, que combateu muito o indigenismo”, afirmou Possuelo em entrevista à Agência Pública.
Na visão do sertanista, que foi presidente da Funai na gestão de Fernando Collor, logo após a promulgação da Constituição, o presidente Bolsonaro está alinhado a correntes militares que se opuseram à filosofia e às práticas do marechal Cândido Rondon ao criar o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e pregavam abertamente a extinção dos índios.
“Vivemos um pensamento advindo de um homem das cavernas. O Bolsonaro quebrou a tradição dos militares dentro do que havia de positivista e humanista nas questões indígenas”, afirma o sertanista.
Para Possuelo, indigenismo e meio ambiente são inseparáveis. E vivem o pior momento com a alta de desmatamentos e queimadas no governo Bolsonaro, o que, segundo ele, deveria levar o presidente a refletir sobre os rumos de sua política para a Amazônia.
“Bolsonaro precisa ver que estamos na contramão do mundo. Hoje está feio e constrangedor falar que é brasileiro.” Para Possuelo, recusar ajuda internacional, dizer que ONGs representam perigo para a soberania ou imaginar que há um “um agente internacional escondido atrás de cada árvore da floresta para tomar a Amazônia” é paranoia e tolice. “Não tem perigo nenhum. Nossa soberania é inatacável.”
Criador do departamento que cuida de índios isolados na Funai e reconhecido internacionalmente como a maior autoridade no tema, Possuelo critica o esvaziamento da autarquia que, segundo ele, já não é mais relevante e caminha para a extinção, mesmo tendo voltado para o Ministério da Justiça. “O Moro já tinha dito que não quer a Funai e está sendo forçado a ficar com um órgão que menospreza.”
Possuelo também comenta a crise internacional provocada pelas queimadas na Amazônia – e a possibilidade de boicote dos produtos brasileiros nos mercados europeus – o que, segundo ele, pode gerar um conflito entre o presidente e seus apoiadores do agronegócio, colocando em xeque até mesmo sua permanência no cargo.
“Isso poderia até reverter o cenário atual ou, se Bolsonaro continuar nessa linha, provocar o impeachment dele.” Veja a entrevista.
Que avaliação o senhor faz do que está acontecendo na Amazônia?
Vivemos, com essas queimadas, os piores momentos da história na questão que envolve os índios e o meio ambiente, que não são separáveis. O que vemos hoje é o resultado do afã de se produzir sempre mais para atender o consumo exasperado e sem limites, como se a terra estivesse em expansão e seus recursos naturais não fossem finitos.
Essa loucura que configurou a sociedade na produção e consumo sem limites é uma das causas. É preciso dizer também que os estados amazônicos nunca tiveram envolvimento com as questões indígenas. Não conheço um só que as defenda. Eles sempre a combateram.
O Bolsonaro falou dia desses que tudo tem um preço e perguntou por que querem vir nos ajudar a combater os incêndios? É uma visão distorcida da realidade. Assim como já enviamos tropas para outros países para auxiliar em situações de emergência, também não deveríamos temer ajuda externa. Sabemos todos que a Amazônia é território nacional e está sob nossa responsabilidade.
O presidente enviou o Exército para a Amazônia e fala insistentemente em ameaças à soberania. Como o senhor vê a presença de militares no combate aos incêndios? Há algo a temer?
Não tem perigo nenhum. Nossa soberania é inatacável. Acho que há uma paranoia excessiva, longe até do que seria tolerável. Veja que curioso: o indigenismo moderno começa antes de 1910, quando Rondon criou o Serviço de Proteção do Índio (SPI) para proteger os indígenas e localizar trabalhadores rurais. E ele era um militar que, com sua visão humanista, positivista, tinha visão oposta aos militares que queriam a extinção dos índios.
Depois da morte de Rondon, sem presença militar digna e infestado por terrível corrupção, o SPI começou a degringolar e acabou fechado em 1967. Os militares extinguiram o SPI e poderiam ter ficado quietos. Mas fizeram a Funai dentro da mesma visão humanista [de Rondon] até os nossos dias. Absorvi muito da visão humanística de Rondon na Funai, que tinha meios, dinheiro, poder para demarcar e era respeitada.
Faço a retrospectiva para dizer que não entendo como vivemos essa situação de um pensamento advindo de um homem das cavernas, que é o Bolsonaro. Ele quebrou aquilo que poderia ser a tradição dos militares dentro do que havia de positivista e humanista nas questões indígenas.
O que o senhor acha que o influencia?
Não entendo o que se passa na cabeça de Bolsonaro, mas acho que ele é influenciado pela Escola do Estado-Maior do Exército do Rio de Janeiro, que combateu muito o indigenismo. Me recordo perfeitamente dos debates que tive com o presidente Collor quando o ministro do Exército [Carlos Tinoco, originário da mesma escola] se posicionava radicalmente contra a demarcação das terras Yanomami e as demais demarcações.
Passei 42 anos dentro da Amazônia e nunca vi qualquer ameaça à soberania. Seria melhor que as Forças Armadas voltassem seu olhar mais ao Sul do Brasil, onde tem um movimento real de separação do resto do Brasil. Onde se viu algum movimento separatista vindo dos povos indígenas? É melhor olhar os índios como eles são: amigos e companheiros que não representam perigo algum à nação brasileira.
Quando fiz os primeiros movimentos para demarcar a reserva dos Yanomami, Roraima era o único lugar em que, como presidente da Funai, tinha de andar com segurança por causa das ameaças.
Como eram essas ameaças?
Não se identificavam. Vinham pelo telefone, mas era movimento contrário à demarcação. Foram várias. Quando estava no hotel recebia telefonemas em que o interlocutor dizia: ‘Você está demarcando seu túmulo. Vamos te enterrar lá’.
Foi a primeira reserva contínua, incluindo a faixa de fronteira, área de segurança nacional, com ouro, minério, e que estava invadida por 45 mil garimpeiros. Retiramos mais de 43 mil garimpeiros daquela terra.
Qual foi o segredo?
Antes de me chamar, Collor mandou explodir pistas, mas não deu resultado porque eles reconstruíram e passaram a usar helicópteros. Então achamos que melhor era controlar o abastecimento. Fiz acordos com a FAB e a Polícia Federal; foi uma ação sistemática em que destruíamos tudo que encontrávamos. Não destruir [os equipamentos de madeireiros e garimpeiros] só dá poder aos invasores.
A fala do presidente [Bolsonaro], desde quando era candidato, dizendo que não demarcaria mais um centímetro de terra demonstrou aversão profunda aos índios e desconhecimento das questões da terra.
Esses milhões de hectares de áreas protegidas não são só para os índios viverem de acordo com suas tradições e cultura. Fazem parte do conjunto florestal brasileiro e são importantes para nós e para o mundo inteiro pelas implicações no clima.
Como o senhor avalia a possível abertura das terras indígenas a garimpos e mineração empresarial?
O espírito do artigo 231 da Constituição é demarcar e preservar para que os povos vivam segundo suas tradições e costumes. Não é hábito dos indígenas fazer estradas, pontes, minerar, destruir as árvores, pegar peixes e vender para fora. Quando o Estado começa a facilitar, a trabalhar a cabeça do índio para ele fazer que nem o branco, está quebrando o espírito da lei.
A lei deixa implícito que o índio pode fazer faiscação, que é diferente do garimpo porque neste há o uso de máquinas e derrubada de barranco. Na faiscação pega o que está na superfície. Ainda assim, não sou favorável porque nas experiências passadas, como dos diamantes dos Cinta Larga, e a extração da madeira dos Caiapó, o que se viu foi a destruição. Vi demais isso na Amazônia. Os Yanomami viveram essa experiência danosa com a contaminação de mercúrio, que também destrói o meio ambiente.
Se só estudamos cerca de 20% da biodiversidade, da microbiologia e de tudo o que há na Amazônia, estamos pondo fogo em 80% do que não conhecemos e que poderiam ser importantes para criar medicações e combater doenças.
Qual a lição dessa crise ambiental?
Os territórios indígenas representam 12,2 % da superfície do país. O que está acontecendo mostra as diferenças do que é um governo. De 1910 para cá, tínhamos demarcado 500 e poucos mil quilômetros quadrados de terra indígena. No governo Collor, em um ano, demarcamos outras 166 áreas, e chegamos a mais de 1 milhão de quilômetros quadrados. A demarcação é um ato soberano do governo do Brasil. Não tem influência nenhuma do exterior.
TI [Terra Indígena] demarcada é boa para os índios, para o meio ambiente e para o Brasil e para as relações com o mundo. Éramos reconhecidos como um país que cuidava dos povos indígenas e que administrava o meio ambiente. De repente, com as queimadas, se perdeu tudo isso. Veio a barbárie.
Espero que isso obrigue o governo a dar uma parada e repense as questões da demarcação, proteção dessas terras e garimpos. É o momento de o presidente refletir: ele não é um Deus, não sabe todas as coisas e, se aceitar ouvir, talvez passe a acessar elementos que possam auxiliá-lo a enxergar melhor, com a ajuda de ministros capazes de ver e sentir a questão indígena como ela é.
A tragédia pode ser uma luz no fim do túnel, mas que não seja a de um trem que pode nos pegar. Ele precisa ver que estamos na contramão do mundo e que proteger nos coloca num patamar mais digno e não enfraquece a soberania. Hoje está feio e constrangedor falar que é brasileiro.
O que representam os sucessivos ataques de Bolsonaro as ONGs?
Dizer que as ONGs nacionais ou internacionais são um perigo à soberania ou que por trás de cada árvore da Amazônia tem um agente internacional querendo pegar a Amazônia é uma grande tolice. Sou favorável às ONGs. Mas acho que as que trabalham na questão indígena precisam do controle do Estado porque as terras são de propriedade da União. O Estado tem de saber o que está se passando ali.
Quem tem projeto interessante apresenta e o índio dá a palavra final. Se o governo não acompanhar, vira terra de ninguém. Nesse momento o governo não só não acompanha, como também usa a Funai para procrastinar as decisões. Muitos programas não foram executados porque a Funai nunca deu resposta.
Por outro lado, algumas ONGs se posicionaram contra a Funai e põem um pé lá dentro para que ela diminua sua atuação ou seja extinta. O controle do Estado é importante, mas não sob o medo de perder soberania ou de os índios se sublevarem. Ninguém vai tomar a Amazônia.
Em que uma ONG não pode atuar na relação com indígenas?
Quando presidi a Funai [1990-1992], um de meus primeiros atos foi o monitoramento do grupo isolado Zoé, no extremo norte do Pará. Vimos e deixamos eles lá. De repente norte-americanos evangélicos e seus irmãos brasileiros foram à área e fizeram o contato. Eram da ONG Novas Tribos do Brasil. Como não tinham falado com ninguém, botei todos eles pra fora.
Quando pediram renovação da licença, concordei que poderiam auxiliar a Funai em tudo, menos que fizessem proselitismo religioso. Expliquei que os índios têm suas próprias crenças e a Funai, a obrigação de defendê-los. Eles então não fecharam o acordo. Me chamaram de besta do apocalipse, Lúcifer, disseram que eu representava o número 666 e que eu estava impedindo que levassem a palavra de Cristo aos índios.
Que providência a Funai deveria tomar para evitar as invasões?
Eu já teria logo declarado que em terra indígena não tem mineração, não apenas por que isso fere o espírito da Constituição, mas por afetar tradições, hábitos e costumes. Se a Funai, que é o braço do Executivo, botar na cabeça do índio que a mineração é boa, mesmo o índio não querendo, pode aceitar.
Hoje o diretor é um delegado da Polícia Federal que já disse a que veio: é favorável ao garimpo. Isso é péssimo, horrível, porque destrói o índio de todas as formas.
A Funai voltou para o Ministério da Justiça, mas os cargos estão sendo preenchidos por indicações políticas da bancada ruralista e por decisão de outra pasta. É normal?
O Moro já tinha dito que não quer a Funai e está sendo forçado a ficar com um órgão que menospreza. Na concepção do atual governo, o que está acontecendo é normalíssimo. A ideia é dividir e, se possível, extinguir a Funai. Atividades como saúde, educação, produção não são mais da Funai. Ela ficou com administração de índios isolados e demarcação. A questão da terra foi separada e jogada para o agronegócio.
Do jeito que a Funai está, sem recurso, sem gente qualificada, pode botar qualquer um porque nesse governo: nada vai mudar e não haverá demarcação. Pela forma das indicações se vê que ela não tem mais relevância. Foi desmontada propositalmente para servir os interesses do agronegócio. Está caminhando para a extinção.
Diante da probabilidade de novos conflitos, como enfrentar esse cenário?
Houve uma reação dos compradores do couro brasileiro, que estão deixando de importar se não comprovar que não se origina do desmatamento, queimadas e invasões criminosas. Isso pode ser o início de uma caminhada que tende a chegar na carne e na soja, o que afetaria a balança comercial, provocando uma reação do próprio agronegócio, que já está arrependido. Isso poderia até reverter o cenário ou, se Bolsonaro continuar nessa linha, provocar o impeachment dele.