A expectativa é que, no mínimo, 7.200 pessoas sejam atendidas no serviço de saúde digital das duas comunidades nos próximos seis meses. Meta definirá expansão das cabines (H.ai/Divulgação)
Repórter
Publicado em 7 de dezembro de 2024 às 06h06.
Última atualização em 7 de dezembro de 2024 às 13h34.
Ao notar que estava perdendo a visão, Reginaldo de Oliveira Manoel, conhecido como Gavião, buscou a ajuda de amigos e conhecidos apoiadores da ONG Complexo do Bem, fundada por ele no bairro de Sapopemba, na periferia da zona Leste de São Paulo, onde mora e atua como líder comunitário. Foi por meio desses contatos que o articulador e produtor cultural pôde ser atendido pelo renomado oftamologista Claudio Lottenberg, presidente do Instituto Coalizão Saúde e do Conselho do Hospital Albert Einstein. E, assim, aos 45 anos, ouviu que estava cego devido a complicações de uma diabetes não diagnosticada quatro a cinco anos antes.
O diagnóstico irreversível veio em meio ao auge da pandemia de Covid-19, época em que Gavião atuava no apoio a diversas famílias em vulnerabilidade social da região. "Eu nunca soube que tinha diabetes", conta o articular comunitário. "Se tivesse feito um exame simples antes, poderia ter evitado perder a visão. Isso me fez entender a importância da conscientização e do acesso à saúde".
Apesar do lamento, motivado por sua própria experiência e pela realidade que testemunha em comunidades de baixa renda, três anos depois Gavião uniu forças com o oftamologista para buscar uma saída a essa falta de acesso à saúde na atenção primária.
A experiência levou à construção do projeto " Saúde na Favela" que, desde junho realiza por mês 600 consultas médicas e outros 15 tipos de exames direto da sede da ONG. Mas não em um consultório comum, e sim dentro de uma cabine de telemedicina.
A tecnologia foi desenvolvida a partir de experiências chinesas adaptadas à realidade brasileira por Lottenberg e Loraine Bugard, responsáveis pela healthtech brasileira h.ai.
Nessa adaptação, a companhia desenvolveu uma estrutura física em que o paciente, acompanhado por uma técnica de enfermagem, é conectado a um médico por videochamada e pode realizar exames clínicos, – como aferição de glicemia, pressão arterial, ECG-eletrocardiograma, exames de pele, ouvido, garganta e olhos, entre outros –, e ter o resultados ou receita de medicamentos enviados em tempo real.
O modelo tem como clientes principalmente grandes empresas, como Globo e CCR, segundo Bugard. Mas no caso da cabine implementada em Sapopemba todos os serviços são gratuitos e contam com a parceria da farmacêutica AstraZeneca, que investiu R$ 250 mil para auxiliar no custeio dos profissionais de saúde e manutenção do projeto.
Nesta terça-feira, 3, mais uma cabine de telemedicina foi lançada nos mesmos moldes pela healthtech e biofarmacêutica no CDC (Clube da Comunidade) Parque Dorotéia, na periferia da zona sul paulistana.
A saúde digital ainda não é capaz de substituir todas as fases do atendimento. Mas a ideia é que os serviços oferecidos desafoguem o sistema público de saúde das duas regiões, garantam emissão de dados rápidos e precisos e conscientizem a população da importância do cuidado com a saúde.
"Essa cabine, que tem interface com a telemedicina, é um canal de acesso [à saúde]. Estamos falando de equidade e inserção de um mecanismo de relacionamento que está acontecendo no mundo. O que temos aqui não é uma proposta tecnológica, é uma proposta de inclusão social e de direito social", afirma o presidente do Conselho do Hospital Albert Einstein e fundador da h.ai que, em 2014, trouxe ao Brasil o modelo de saúde digital. "Estamos discutindo oportunidades de tornar a saúde de fato mais acessível."
A iniciativa envolve quase meio milhão de recursos. A expectativa é que, no mínimo, 7.200 pessoas sejam atendidas no serviço de saúde digital das duas comunidades nos próximos seis meses.
"É um número significativo de vidas impactadas se você pensa nos problemas que podemos evitar", destaca Loraine Bugard.
A avaliação é de que 80% das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil poderiam ser evitadas com o acompanhamento correto pela Atenção Primária em Saúde, que envolve as consultas de rotina e o acesso ao tratamento e acompanhamento médico.
Dados do Ministério da Saúde mostram, no entanto, que no Brasil as DCNT são a maior causa de morte da população e "constituem em uma epidemia no país". Nota técnica da pasta de 2023 aponta que 700 mil pessoas foram vitimadas no Brasil e cerca de 50% da população tinha ao menos uma DCNT diagnosticada em 2019.
Atualmente, uma média de 30 pessoas passam em consultas pela cabine diariamente. Já no primeiro dia da unidade do Parque Dorotéia, todos os horários foram ocupados. A demanda é resultado também de um trabalho de comunicação feito em parceria com as instituições sociais da região. O projeto também está conectado ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Os pacientes atendidos conseguem trocar a receita nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou terem acesso a um especialista, a partir da necessidade identificado pelo médico remotamente que o referenciará ao equipamento público para ingresso na fila. Até o momento, as mulheres têm sido o principal perfil atendido. Mas em Dorotéia já foi identificada uma demanda maior por parte da população masculina até por causa da conhecida Copa de futebol de várzea na região.
As consultas são realizadas dentro do horário de funcionamento dos equipamentos sociais, que costuma ser das 9h às 18h, e há atendimentos também aos finais de semana por causa da demanda de moradores das regiões. Os pacientes recebem também os dados da consulta e as informações coletadas obedecem, de acordo com a healthtech, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o anonimato.
A fundadora da h.ai acrescenta que as pessoas se sentem vistas e cuidadas, mesmo conversando com o profissional de saúde por computador. "As pessoas saem falando que o médico olhou para elas o tempo inteiro", diz.
O presidente da AstraZeneca Brasil, Olavo Corrêa, afirma que a biofarmacêutica já tem a intenção de expandir a ação por outras localidades. Mas aguarda os resultados dos próximos seis meses para ter em dados os benefícios dessa iniciativa. A ideia é com essas informações garantir maior assertividade nos próximos endereços e subsidiar políticas públicas, incluindo o próprio SUS.
"Investimento em atenção primária reduz custos. Estamos prevenindo doenças que lá na frente vão gerar custos maiores para o sistema de saúde", defende Corrêa.
A iniciativa faz parte de um portfólio de ações sociais da biofarmacêutica que vem buscando, segundo o presidente, ir além da pesquisa, desenvolvimento e fornecimento de medicamentos para atuar na prevenção.
"Tudo que a gente faz no mercado público é endereçado à maior parte da população. Sabemos da diferença de renda que existe no Brasil. Infelizmente, no mercado privado é onde o dinheiro está, mas é no mercado público que os pacientes estão. E cada vez mais que a gente conseguir atuar no mercado privado e público em parceria, vamos conseguir trazer mais benefícios para a população", afirma.
Com o acúmulo de experiências junto ao público, as duas empresas defendem a inclusão do modelo de cabines no SUS. O uso da saúde digital ganhou notoriedade em 2020 com a pandemia, mas só foi regulamentada em 2022 pelo governo federal. Desde então vem crescendo no setor privado, mas também no público.
No ano passado, mais de 30 milhões de atendimentos médicos foram feitos à distância no país, segundo a Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), que reúne 14 grupos de operadoras de planos de saúde. O número é 172% maior que as 11 milhões de consultas remotas de 2020 a 2022. O mercado de healthtechs também deve atingir R$ 7 bilhões até 2025, apontam a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) e o Distrito Datalab.
"Queremos levar isso para todos como uma parceria público-privada. Porque no final do dia o privado pode ajudar muito o público principalmente na expertise na área da saúde, que é um tema complexo. E precisamos de pessoas que tenham experiência e possam melhorar esse sistema de saúde pública, que é maravilhoso, mas está sobrecarregado. São 75% das pessoas sem plano de saúde", afirma Loraine Bugard.