Drogas: em julho, Bolsonaro assinou o decreto nº 9.926, que reduziu a participação de representantes da sociedade civil no Conad. (eyegelb/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 6 de agosto de 2019 às 18h03.
Última atualização em 6 de agosto de 2019 às 19h21.
São Paulo — Diferentemente do que afirma postagem que viralizou nas redes sociais, o Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad) não era aparelhado por membros da sociedade civil. A análise das atas e registros das reuniões de 2006 a 2018 mostra que seus integrantes apresentavam opiniões diversas sobre diferentes pontos da política de drogas.
No texto viralizado, consta que “os chamados ‘especialistas’ e grupos da ‘sociedade’, que aparelhavam o Conad (Conselho Nacional de Política sobre Drogas), foram dissolvidos pelo governo Bolsonaro.” Ele ainda afirma que esse aparelhamento contava com “médicos, juristas, psicólogos, cientistas e antropólogos”.
Para verificar se existia aparelhamento no Conad, o Comprova leu e analisou mais de 30 atas e registros das reuniões realizadas de 2006 a 2018. Também foram consultadas as resoluções do conselho e seu regimento. Além disso, os verificadores solicitaram posicionamentos oficiais dos representantes das categorias profissionais e do terceiro setor e entrevistaram alguns dos ex-conselheiros. [Os links para esses documentos estão no final deste post].
Segundo a postagem, “as políticas dos governos passados apoiavam – e ainda apoiam — a liberação e o consumo das drogas no Brasil”. De fato, as atas mostram que havia membros do Conad que defendiam a descriminalização das drogas, no entanto, a posição não era majoritária nem chegou a ser tema de votação no conselho em todo período analisado.
Desde 2006, após um decreto do governo Lula, o Conad passou a ter 27 cadeiras, das quais 13 foram destinadas a representantes da sociedade civil — oito privativas de determinados grupos e conselhos profissionais e quatro que eram indicadas pelo governo para mandatos de dois anos.
Em 22 de julho de 2019, o atual presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto nº 9.926, que reduziu a participação de representantes da sociedade civil no Conad.
Dentre os oito grupos que possuíam cadeiras fixas no Conad, dois (o Conselho Federal de Serviço Social e a União Nacional dos Estudantes) se posicionam abertamente a favor da descriminalização das drogas. Apenas um deles se declarou abertamente contra: o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em resposta ao Comprova, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Enfermagem (CFE) afirmaram em nota não ter posicionamento consolidado sobre o tema. Pela análise das atas, não foi identificado posicionamento das entidades quanto à descriminalização.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Nacional de Educação (CNE) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) tampouco se posicionaram abertamente quanto ao tema nas reuniões. O Comprova entrou em contato com as três organizações repetidas vezes, no entanto, até a publicação desta reportagem, o CFP não respondeu à pergunta quanto à descriminalização e não houve retorno da CNE e da SBPC.
Apesar de não se manifestarem quanto à descriminalização, em reunião de 2009, o representante da SBPC Elisaldo Luiz de Araújo Carlini defendeu o uso medicinal da cannabis e, em setembro de 2015, o representante do CFP propôs este tema para discussão.
Conforme consta em ata de 15 maio de 2012, a secretária-executiva do Conad à época sugeriu a criação de um grupo de trabalho para discutir o tema. Na ocasião, o então representante da Polícia Federal no Conselho disse que não julgava interessante participar do GT, devido ao posicionamento da PF quanto ao tema. “Acho que fica mais tranquilo a discussão sem a nossa presença, vamos colocar assim. Tudo bem?”
Em resposta, o então representante do Conselho Federal de Medicina afirmou que, independentemente da posição, a participação do órgão era importante. “O trabalho consiste na discussão de vieses e dos cenários possíveis”, disse.
Nessa mesma reunião, o médico ainda questionou o conteúdo de gibis feitos pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). De acordo com a ata, o médico afirmou que existia “anuência para a liberação da maconha e a ‘satanização’ do crack” no encarte. A secretária respondeu que o Senad possuía materiais específicos a respeito da maconha.
Entre os representantes do meio artístico o único que chegou a se pronunciar a respeito do tema foi o ator Marcos Frota, que, em reunião em 28 de agosto de 2012, registrou ser contra a liberação das drogas.
Como os representantes da sociedade civil eram renovados ao longo do tempo, o Comprova entrou em contato apenas com os membros que faziam parte do conselho neste ano e foram excluídos pelo decreto de Bolsonaro.
Ao todo, o Conad teve três resoluções oficiais desde 2006. A primeira delas, no entanto, não passou pelo crivo dos representantes da sociedade civil.
Apesar de ter sido publicada oficialmente em 2010, a decisão do Conad favorável ao uso da Ayahuasca para fins religiosos foi tema de votação no conselho em 6 de dezembro de 2006. Antes, portanto, da primeira reunião em que a sociedade civil passou a fazer parte da composição do Conad, em 27 de junho de 2007.
Comunidades terapêuticas
A segunda resolução do Conad, publicada em 2015, trata do marco regulatório das comunidades terapêuticas, categoria de organização que trata dependência química e que passou a constar na Política Nacional de Drogas no governo Bolsonaro. A questão foi tema de diversas reuniões do Conad.
Comunidades terapêuticas são entidades privadas sem fins lucrativos. Elas se diferenciam de outros serviços de atendimento a pessoas nessas condições por promoverem terapias que incluem trabalho e práticas religiosas, como rezas. As comunidades terapêuticas têm a meta de fazer com que o usuário problemático de drogas se torne abstêmio e se reintegre socialmente.
Ao mesmo tempo em que o Conad contava com representantes da sociedade civil, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), que se colocaram repetidamente contra a transferência de recursos públicos para essas instituições, as duas cadeiras reservadas ao terceiro setor foram majoritariamente ocupadas por pessoas ligadas a organizações de comunidades terapêuticas.
Exemplos disso são a Fazenda da Esperança, o Conselho Estadual de Comunidades Terapêuticas, a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) e a Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Confenact).
Durante os doze anos de trabalho do Conad, também ocuparam as cadeiras do terceiro setor organizações como o Sesi, o Sindicato dos Psicólogos de SP e a ONG Lua Nova.
Em março de 2014, foi constituído um Grupo de Trabalho (GT) para discutir a regulamentação das comunidades terapêuticas. Após quase um ano de debates e duas audiências públicas, a resolução foi aprovada, com abstenção do representante do Ministério da Saúde. Não consta em ata quem votou a favor e quem votou contra a proposta.
Em 2016, a resolução foi questionada na Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF) e revogada pelo próprio Conad. Isso porque, para o MPF, a decisão alterava a política de saúde, algo que não era da competência do conselho. Já no governo Temer, em 2018, após a União recorrer da decisão da justiça e conseguir uma sentença favorável, a resolução voltou a valer.
Política de abstinência
Ao longo dos doze anos de atas analisadas, foram identificadas discussões sobre políticas de abstinência em contraposição à política de redução de danos, que era defendida nos governos Lula e Dilma.
Ao contrário da abstinência, tratamentos que utilizam política de redução de danos não exigem necessariamente que os dependentes abandonem por completo o uso de drogas.
A terceira e última resolução do Conad, aprovada em março de 2018, antecipou parte das mudanças instituídas em 2019 pela nova Política Nacional de Drogas. Esta resolução se baseou no Projeto de Lei 37 apresentado em 2013 por Osmar Terra, na época deputado federal.
Segundo notícia publicada na época, no site do Ministério da Justiça, o texto aprovado consolidou uma guinada na política da abstinência no Brasil. “A orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”, diz um trecho da resolução.
De acordo com os registros, as categorias dos psicólogos, assistentes sociais e antropólogos se manifestaram repetidamente como sendo contrárias a políticas de abstinência. Em reunião de agosto de 2012, o representante do Conselho Federal de Psicologia afirmou que “propostas de tratamento para qualquer tipo de droga, voltadas à abstinência como única possibilidade, estão fadadas ao fracasso”.
Ao mesmo tempo, representantes de comunidades terapêuticas, assim como médicos, no geral, se colocavam contra a redução de danos. O então representante do Conselho Federal de Medicina (CFM) afirmou em reunião de setembro de 2010 que alguns aspectos dessa política não atendiam à necessidade de se fazer uma repressão efetiva às drogas. “Muitas vezes a impressão é de que há um consentimento social, uma tolerância para o consumo das substâncias ilícitas”, disse.
Conforme consta em registro de reunião em outubro de 2016, após críticas ao marco regulatório aprovado pelo Conad, o então representante da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Confenact), Egon Schlüter, afirmou: “não consta a palavra abstinência na resolução, nós lutamos pelo direito de a pessoa dependente escolher. O nosso atendimento é voluntário e a qualquer momento ela pode desistir”. Como explicou em entrevista ao Comprova, a Confenact é favorável à política de abstinência como objetivo final do tratamento e, à redução de danos apenas como meio de levar a pessoa ao tratamento.
O texto falso foi publicado pelo site Jornal da Cidade Online e, conforme dados do plugin Crowdtangle do Facebook, teve até a data de 6 agosto mais de 5,9 mil curtidas e 1,8 mil compartilhamentos na rede social. O material foi compartilhado por páginas como Direita São Paulo e Bolsonaro News BR.
O decreto que reduziu a participação da sociedade civil no Conad foi publicado um mês depois da aprovação pelo Senado de projeto que promoveu alterações na política nacional de drogas.
Entre as mudanças estão a incorporação das comunidades terapêuticas ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e a volta da abstinência como objetivo do tratamento da dependência química. O projeto é de 2013 e de autoria do ex-deputado federal e atual ministro da Cidadania, Osmar Terra.
Ao longo dos anos, os representantes do Conad debateram inúmeras vezes sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas e também sobre as políticas de redução de danos e de abstinência. Como o Comprova verificou, não havia consenso entre os conselheiros nesses temas.
Em 2016, Osmar Terra passou a representar o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário no Conad e, conforme consta em ata, fez críticas à política de drogas então em vigor: “O problema nosso é que a nossa lei é uma lei mal feita, ela é uma lei de ideias liberais”.
Figura-chave para aprovação da resolução do Conad de 2018, que já definia a política de abstinência como prioridade antes de ela se tornar lei, foi ele quem apresentou o texto da resolução ao Conselho e reiterou, inúmeras vezes, a urgência de deliberação. “Precisamos dar uma resposta à sociedade, não podemos mais adiar essa decisão, temos que avançar, dar um passo adiante”, afirmou, segundo consta em ata.
Em reunião em 1º de fevereiro de 2018, parte dos representantes da sociedade civil se colocou contra a votação da proposta. A representante do CFESS defendeu realização de audiências e consultas públicas para debater o tema com a população. A SBPC e a CNE alertaram para ausência de mecanismos para aprimorar a política de drogas que envolvessem áreas da educação. As organizações criticaram, ainda, a falta de pesquisas para embasar as discussões da proposta. Já a Confenact defendeu que a votação não fosse interrompida, uma vez que o conteúdo da proposta já havia sido divulgado.
Após um pedido coletivo de vista, o Conad adiou a votação, que foi realizada em 1º de março de 2018. A resolução foi aprovada por 16 votos a favor e quatro contra. Desde então, o Conad só se reuniu uma vez, em junho de 2018.
Conselhos com direito a indicar um representante:
Representantes indicados pelo próprio Governo (mandato de dois anos)
Onde acessar as atas das reuniões:
*A checagem acima, investigada por EXAME, Folha de S.Paulo e Poder360, foi publicada pelo Projeto Comprova, uma coalizão de 24 veículos de mídia, incluindo EXAME, formada com o objetivo de combater a desinformação sobre políticas públicas federais. Você pode sugerir checagens por meio do número de WhatsApp (11) 97795-0022.