Brasil

Doações são fruto de corrupção, diz criador da Ficha Limpa

Em entrevista a EXAME.com, Márlon Reis, um dos idealizadores da Ficha Limpa, descreve como a corrupção nasce, cresce e se perpetua no Brasil

Juiz Márlon Reis (Divulgação/Divulgação)

Juiz Márlon Reis (Divulgação/Divulgação)

Talita Abrantes

Talita Abrantes

Publicado em 12 de fevereiro de 2015 às 16h36.

São Paulo – O intricado sistema de desvios de recursos da Petrobras para supostamente irrigar campanhas políticas revelado pela Operação Lava Jato é, na verdade, um padrão perpetuado em outros esquemas de corrupção espalhados pelo Brasil.

Esta é a constatação que o juiz da comarca de João Lisboa (MA),  Márlon Reis, chegou após entrevistar mais de 100 políticos e pessoas ligadas a campanhas eleitorais.

“O próprio contrato [da obra] já nasce levando-se em conta a condição de que parte do dinheiro, que na origem é público, volte para a campanha”, afirma Reis em entrevista a EXAME.com. Fato que, segundo ele, coloca até as doações legais sob suspeita.

Conhecido por ser um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, Reis defende o fim do financiamento privado de campanhas. “Precisamos tirar o dinheiro das eleições", diz. Para ele, a proposta – que é apoiada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha - de incluir as doações empresariais na Constituição "trata-se de um golpe". 

Reis foi o primeiro juiz no Brasil a exigir a divulgação dos nomes de doadores de campanha antes da realização do pleito. A norma, depois, foi assimilada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Especializado em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidade de Zaragoza, na Espanha, o juiz é um dos fundadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. No ano passado, lançou o livro "O Nobre Deputado" (Editora Leya) que compila os resultados de suas investigações sobre corrupção no Brasil. 

O teor do discurso  do magistrado, contudo, não agradou o então presidente da Câmara dos Deputados Henrique Eduardo Alves, que encaminhou uma representação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra Reis com um pedido de punição disciplinar. O processo foi arquivado. 

Veja trechos da entrevista que ele concedeu a EXAME.com por telefone. 

EXAME.com: O que as investigações da Operação Lava Jato revelam sobre como nasce e se perpetua um político corrupto?

Marlon Reis: Entrevistei várias pessoas do cenário político e todas, unanimemente, disseram que o financiamento [de campanha] é uma antecipação de algo que tem que voltar multiplicado para os financiadores. Esta é uma das formas.

A outra é inversa: o dinheiro público é transferido para os financiadores através de contratos ilícitos e superfaturados. Depois, uma parte deste dinheiro volta para a campanha. A Operação Lava Jato mostra exatamente este padrão.

Muitos [entrevistados] afirmaram que o dinheiro que é apresentado como doação empresarial é, muitas vezes, dinheiro público que chega às campanhas apenas intermediado pelas empresas na forma de contratos fraudulentos.

O senhor está querendo dizer que até as doações legais podem estar ligadas à corrupção?

Exatamente. Não é à toa que os maiores doadores [das eleições] são empresas que mantém contratos com o poder público. Isso coloca a doação legal sob suspeita. O próprio contrato já nasce levando-se em conta a condição de que parte do dinheiro, que na origem é público, volte para a campanha.

O que torna isso possível?

Os contratos são feitos com empresas que participam do jogo político através de licitações dirigidas ou de ações governamentais que inviabilizam a participação de outras empresas. Dessa forma, se reduz drasticamente o número de pessoas que participam do processo de movimentação de recursos.

O desvio acontece de duas formas. Ou pelo superfaturamento da obra – em que pagam pelo serviço mais do que deveria ser cobrado com o objetivo de destinar o percentual excedente aos políticos envolvidos - ou então realiza-se a construção de maneira inferior ao que foi contratado para permitir a economia de dinheiro que vai irrigar as campanhas eleitorais.

Em seu livro o senhor afirma que o pagamento das campanhas também é feito por meio de agiotagem. Isso torna o sistema mais perverso?

Isso é regra para as eleições para prefeito e está se generalizando pelo país. É alarmante porque os agiotas têm disponível a quantidade de dinheiro que o candidato quiser, não há limite. É certeza da vitória.

O pagamento é cruel porque depois haverá o pacto da administração pública durante todo o mandato. É comum até que os agiotas indiquem os nomes da comissão permanente de licitação e do secretário de finanças ou tesoureiro do município para faturar durante os quatro anos.

E tem outra coisa: eles não querem o pagamento principal, aceitam apenas juros extorquidos de 10 a 20% ao mês que são pagos durante todos os quatro anos de mandato. Isso é perverso.

Como o atual sistema político favorece este cenário?

Em primeiro lugar com o modelo de financiamento de campanhas que obriga o candidato a buscar cada vez mais dinheiro.

Por que é preciso captar cada vez mais dinheiro?

O apoio político, via de regra, é obtido a partir de pagamentos. Paga-se para lideranças locais direcionarem os votos de pessoas sem cultura política do ponto de vista eleitoral. Por um certo preço se combina quantos votos aquela liderança trará.

Eles chamam isso de [pagamento] de estrutura de campanha. Mas a prova de que é um suborno é que eles [os líderes locais] fazem isso com quem dá mais dinheiro. Se o candidato não tiver, o líder vai apoiar outro que tenha. De tal forma que, na verdade, se trata de um leilão que cresce assustadoramente a cada eleição. Por isso, se desvia tanto [dinheiro] no Brasil.

Quem são esses líderes locais?

São vereadores, prefeitos, ex-prefeitos, presidentes de associação ou sindicatos e até lideranças religiosas. Eles atuam o tempo todo como patronos - ajudando as pessoas a resolver problemas pessoais e burocráticos.

Eles estabelecem uma relação de vínculo coronelista que traz a certeza de que os votos virão depois. Os cabos eleitorais são conhecidos no meio político. Os candidatos sabem onde eles estão, quem são e quanto custam. Isso não é oculto no meio político, é escancarado e bem normal.

É um novo tipo de coronelismo?

É o mesmo coronelismo que teimou em chegar até o século 21. Precisamos tirar o dinheiro das eleições justamente para mudar a lógica. A lógica hoje é pagou, levou. O sistema eleitoral atual é uma parteira de escândalos. Se não quebrarmos isso não tem como combatermos a corrupção.

Como o senhor avalia a proposta de reforma política que é defendida pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha? 

Trata-se de um golpe. É um golpe que objetiva fulminar a Constituição de 1988 em pontos que ela mais acertou. Enquanto a Operação Lava Jato escancara o quanto perniciosa é a relação entre empresas que contratam com o governo e campanhas, essas pessoas querem constitucionalizar esta relação que é por natureza corrupta.

Na sua opinião, qual é a reforma política que o Brasil precisa?

Primeiro, nós precisamos de eleições baratas, transparentes, e em que qualquer pessoa possa participar dispondo ou não de recursos pessoais ou de um grande doador.

Por isso, defendemos um financiamento misto, em parte público e em parte proveniente de pequenas doações feitas por pessoas físicas até o limite de 700 reais com divulgação em tempo real pela internet. Que se escancare as contas dos políticos para qualquer um poder comparar o que está acontecendo na campanha com o que está sendo declarado perante a Justiça Eleitoral.

Do ponto de vista do sistema eleitoral, nós lutamos pela manutenção do sistema proporcional, mas com alterações. Sugerimos um modelo de dois turnos. No primeiro, se vota no partido e no segundo, se vota no candidato para preencher as vagas conquistadas pelo partido. Com isso, nós vamos enfatizar o programa dos partidos e não haverá a possibilidade de candidato arrastar votos para outro.

Qual é o impacto de todas essas distorções – como compra de apoio político e desvios de dinheiro - para a democracia?

O voto de opinião está diminuindo no Brasil e está ganhando força este voto mercenário. A Câmara dos Deputados eleita no ano passado teve uma visível queda de qualidade na sua composição. Eu arriscaria dizer que temos a pior composição da Câmara da História.

Representantes eleitos com voto de opinião são uma minoria. A grande maioria é de pessoas bancadas pelas grandes corporações – inclusive por essas que estão sendo alvo de investigação que foram as maiores financiadoras das eleições de 2014.

O senhor fala isso baseado no fato de que as eleições 2014 foram as mais caras da história?

Exatamente. Os eleitos são os que arcaram mais.

No ano passado, o senhor disse uma coisa até mais branda do que agora em uma entrevista e foi processado pela Câmara dos Deputados. Em que pé está este caso?

No começo de dezembro do ano passado, esta representação contra mim na Câmara dos Deputados foi arquivada por que o Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão entendeu que eu exerci o meu direito à liberdade de expressão.

O Parlamento deveria ter investigado o que eu estava dizendo. Em lugar disso, o [então] presidente da Câmara Henrique Eduardo Alves decidiu tentar me perseguir.

A Lei da Ficha Limpa já foi aplicada em duas eleições até agora. Qual é saldo?

O saldo é totalmente positivo. Uma questão preocupante para mim diz respeito à qualidade dos votos dos Tribunais de Contas. Hoje, eles têm muito mais poder por causa da Lei da Ficha Limpa, mas precisam ser aprimorados.

Eles são compostos hegemonicamente por políticos que foram derrotados e que ganham o cargo como prêmio de consolação. Isso é evidente e aviltante. O Tribunal de Contas também não tem controle interno. Não faz sentido um órgão sem controle em se tratando de uma democracia.

O que deu errado no caso do deputado Paulo Maluf que, apesar de condenado por improbidade administrativa, pode assumir novo mandato? 

O que deu errado foi a composição do TSE. O mesmo TSE que havia dito que ele era inelegível, depois, em outro julgamento, mudando apenas um membro da Corte, entendeu que ele passava a ser elegível, o que mostra que a questão é puramente valorativa. Não é uma falha que possa ser imputada à lei, e sim à maneira como as pessoas querem aplicá-la. 

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