Armas: para o senador, armar a população é um modo eficiente de diminuir a violência (iStock/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 3 de novembro de 2017 às 18h04.
O senador Wilder Morais (PP-GO) apresentou recentemente uma proposta para facilitar a fabricação, a comercialização, a posse e o porte de armas no país.
Batizada como Estatuto do Armamento (Projeto de Lei do Senado nº 378/2017), a iniciativa também elimina a necessidade de cadastrar as armas hoje consideradas obsoletas e permite que Secretarias de Segurança Pública se responsabilizem pela emissão de registros – hoje uma atribuição da Polícia Federal.
Para o parlamentar, armar a população é um modo eficiente de diminuir a violência. Um estudo sobre as microrregiões brasileiras mostra, no entanto, que o aumento de 1% na quantidade de armas de fogo faz subir em até 2% a taxa de homicídios.
O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública – verificou a justificativa do Estatuto do Armamento e encontrou informações falsas, sem contexto, discutíveis ou distorcidas em todos os trechos que citavam dados.
Procurado tanto para indicar as fontes usadas como para se posicionar sobre as conclusões da checagem, o senador não se manifestou.
Ainda que o Brasil realmente seja líder em homicídios em valores absolutos, este número não reflete de forma realista a criminalidade de um local.
Há enormes diferenças entre o tamanho da população dos países, o que prejudica análises comparativas – países mais populosos tendem a ter mais mortos por esse tipo de crime. Por isso, a frase de Wilder Morais é classificada como sem contexto.
Segundo o Atlas da Violência 2017, estudo anual realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou, em 2015, 59.080 homicídios.
O número de fato torna o país “líder mundial em números absolutos de homicídios”, como afirma Morais.
O Brasil, no entanto, está em 9º lugar no ranking mundial de homicídios a cada 100 mil habitantes. São 30,5 ocorrências a cada 100 mil moradores.
O dado, relativo ao ano de 2015, é do relatório Estatísticas Globais de Saúde, divulgado em maio de 2017 pela Organizações das Nações Unidas (ONU).
O índice é inferior apenas ao de Honduras, El Salvador, Venezuela, Colômbia, Belize, Guatemala, Jamaica e Trinidad e Tobago.
A taxa de homicídios a cada 100 mil habitantes é considerada a estatística mais precisa para medir os índices de violência em um determinado local.
“Há uma dificuldade em medir a violência com outros números, já que você tem, em muitos lugares, problemas de subnotificação de crimes e falta de transparência do poder público”, explica o pesquisador Daniel Cerqueira, responsável técnico pelo Atlas da Violência 2017.
“O número de homicídios a cada 100 mil habitantes traz o retrato mais fiel, porque é mais difícil que haja subnotificação desse tipo de crime.”
O responsável pelo relatório também destaca que o número absoluto de homicídios não é indicado para comparações como a que foi feita pelo senador.
“Sempre se usa a taxa de homicídios a cada 100 mil habitantes, porque ela permite que haja uma padronização diante das diferenças populacionais. Trata-se de um consenso mundial”, explica Cerqueira.
A análise dos números absolutos de homicídios pode dar origem a interpretações distorcidas, já que um país pequeno muito violento pode ter registros inferiores ao de países populosos considerados menos violentos.
É o caso, por exemplo, de Honduras, que tem a maior taxa de homicídios do mundo, uma média de 85,7 a cada 100 mil habitantes, de acordo com o último relatório da ONU.
Em números absolutos, entretanto, o país registrou aproximadamente 7.800 homicídios em 2015, segundo as estimativas da ONU.
O valor é inferior ao de países como os Estados Unidos, que registrou 15.181 ocorrências no mesmo ano, como mostram dados do FBI.
A afirmação de que a taxa de solução de homicídios no Brasil fica entre 5% e 8% é reproduzida constantemente, mas não existe nenhum estudo que tenha chegado a essa conclusão.
Juristas como Luiz Flávio Gomes e até mesmo uma publicação oficial da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp) citam esses porcentuais, apontando que teriam sido o resultado de uma pesquisa da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), de 2011.
A checagem descobriu, contudo, que o dado é falso.
O presidente da ABC, Bruno Telles, afirmou que a origem do número era o livro O Inquérito Policial no Brasil: uma pesquisa empírica, de Michel Misse. Procurado, o especialista contestou a informação.
“Não existe a taxa nacional [de solução de homicídios]”, afirmou Misse.
“Ela é citada como base em diferentes pesquisas, mas é impossível estabelecê-la pelo simples motivo de que não temos no Brasil sequer uma taxa nacional de homicídios de base jurídica. A única base com que contamos é o DataSUS, do Ministério da Saúde. Há aproximações como a do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e até hoje só a vejo sendo repetida. No meu trabalho, encontramos uma taxa média para cinco capitais entre 10% e 15%. Mas não é uma taxa nacional.”
A reportagem entrou em contato também com a assessoria do Ministério da Justiça, que encaminhou por e-mail o estudo “A investigação dos homicídios no Brasil”, onde é possível consultar as informações sobre as taxas de esclarecimentos em diferentes estados. O órgão não dispõe de números nacionais padronizados e consolidados.
Como são resolvidos os homicídios | |||
Pesquisa | UF | Período | Taxa de esclarecimento |
Soares et al. (1996) | RJ | 1992 | 8% |
Rifiotis (2007) | SC | 2000-2006 | 43% |
Ratton e Cireno (2007) | PE | 2003-2005 | 15% |
Misse e Vargas (2007) | RJ | 2000-2005 | 14% |
Sapori (2007) | MG | 2000-2005 | 15% |
Costa (2010) | DF | 2003-2007 | 69% |
Se forem considerados os dados do Tribunal de Justiça referentes aos flagrantes de homicídio (consumado e tentativa) de 2005, no mesmo ano da ocorrência, o total de homicídios que é esclarecido na capital do estado do Rio de Janeiro não chega a 11%, podendo variar no máximo até 15% das ocorrências até quatro anos depois, segundo o artigo “O inquérito policial no Brasil: Resultados gerais de uma pesquisa”.
O estudo, organizado por Michel Misse, analisa os inquéritos policiais e o universo da investigação da Polícia Judiciária de quatro estados e do Distrito Federal, com exclusão da Polícia Federal.
Foram selecionadas as capitais do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e o Distrito Federal.
Já o artigo “A (in)efetividade da justiça criminal brasileira: Uma análise do fluxo de justiça dos homicídios no Distrito Federal”, de Artur Trindade Costa, calcula que foram solucionados 69,1% dos casos de homicídios em 2007 no Distrito Federal.
Entre os problemas para definir esse índice estão a falta de acompanhamento das investigações policiais e a dificuldade de se saber o que está sendo considerado como esclarecimento.
“Os poucos dados existentes sobre esse tema acompanham desde o momento em que começa a investigação do homicídio até o momento que termina essa investigação. As pesquisas mais focalizadas mostram em torno de 8% e 12%, 15% no máximo. Em Belo Horizonte, na nossa pesquisa estimamos que, entre 2003 e 2013, temos mais ou menos 20% de todas as investigações policiais que foram iniciadas sendo convertidas em processos”, afirma Ludmila Ribeiro, pesquisadora e professora do Centro de Estudo e Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O dado sobre a quantidade de armas nas mãos da população nos Estados Unidos e no Brasil usado pelo senador Wilder Morais está correto, mas falta a informação de que se baseia em estimativas.
Não há como saber o número real, uma vez que muitas das armas em circulação não estão registradas. Por isso, o Truco classifica a frase como sem contexto.
O projeto de lei indica como fonte das informações uma reportagem publicada no site da BBC, em dezembro de 2012 – “Com menos armas, Brasil tem três vezes mais mortes a tiro que os EUA”.
A matéria extraiu dados de um relatório do Escritório da Organização das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC, em inglês) e do Ministério da Saúde.
O texto cita a estimativa de que 270 milhões de armas estavam nas mãos dos americanos, contra 15 milhões em posse dos brasileiros, segundo números de 2007. Isso representa uma diferença de 18 vezes – próxima de 20, como afirmou o senador.
No caso do Brasil, o estudo mais recente foi feito na década passada pelo projeto suíço Small Arms Survey. A análise, de 2007, calcula que havia 14,8 milhões (14.870.400) de armas no país nas mãos da população, legalizadas ou não.
Nos Estados Unidos, pesquisadores das Universidades Harvard e Northeastern publicaram um levantamento nacional sobre o tema no ano passado, o National Firearms Survey. Eles estimaram o número de armas no país em 270 milhões em 2015.
Esse número é o mesmo do que o de 2007, porque foi usada uma outra metodologia de análise – não significa que a quantidade tenha permanecido igual em dez anos.
Segundo os pesquisadores de Harvard, metade das armas dos Estados Unidos está nas mãos de apenas 3% da população.
Nesse trecho do projeto de lei, o senador Wilder Morais errou ao usar o termo “taxa de homicídios”. Na verdade, o parlamentar deveria ter escrito “número de homicídios por arma de fogo”.
Isso porque, como na frase anterior, o dado que faz essa comparação entre o Brasil e os Estados Unidos foi extraído de uma reportagem da BBC, como o próprio texto da proposta indica.
Os números citados na matéria estão corretos, mas são de 2010 – há outros, mais atuais – e se referem apenas à quantidade de homicídios por arma de fogo. A frase do parlamentar, portanto, é falsa.
A reportagem da BBC mostra uma diferença de 3,7 vezes entre o número total de mortos por armas de fogo nos dois países – o que foi arredondado para cima no projeto do senador, para 4 vezes.
Ao todo, 9.960 pessoas foram assassinadas dessa maneira nos Estados Unidos em 2010, contra 36.792 no Brasil no mesmo ano. Os dados vêm do UNODC e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
Em números mais recentes, os Estados Unidos tiveram 15.181 homicídios em 2015, e o Brasil, 59.080. A diferença continuou semelhante e foi de 3,8 vezes, mas a quantidade de mortos cresceu nos dois locais.
A taxa de homicídios é um índice criado para permitir a comparação entre lugares com tamanhos diferentes de população.
Um país grande provavelmente terá muitos homicídios, mas isso não quer dizer que a violência será maior.
Para que haja uma análise mais correta, é calculada a quantidade de mortes intencionais por 100 mil habitantes.
Nesse caso, os resultados da comparação são ainda mais desfavoráveis para o Brasil do que o que afirmou o parlamentar.
A versão de 2011 do Estudo Global sobre Homicídios (Global Study on Homicide 2011) destaca que houve 3,2 homicídios por armas de fogo por 100 mil habitantes nos Estados Unidos em 2010.
No Brasil, naquele mesmo ano ocorreram 19,3 homicídios por armas de fogo por 100 mil, segundo o Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Logo, a taxa brasileira foi seis vezes maior do que a americana naquele ano, considerando apenas as mortes desse tipo.
De acordo com os dados mais recentes, os Estados Unidos tiveram uma taxa de 4,9 homicídios por 100 mil em 2015. No mesmo período, a taxa do Brasil foi de 28,9 por 100 mil.
A diferença continuou a ser de seis vezes entre as duas taxas, porque ocorreu um aumento nos índices nos dois países.
Não há como saber a quantidade exata de armas nas mãos da população de um país, porque nem todas são registradas.
Uma parte do arsenal acaba entrando ilegalmente ou indo parar no exterior, pode quebrar, ser destruído ou simplesmente desaparecer.
O grau com que isso acontece é desconhecido. Todos os dados disponíveis sobre esse tema são estimativas, que usam metodologias diferentes e igualmente válidas para chegar a uma conclusão. Por esse motivo, a frase do senador Wilder Morais é discutível.
O dado de que havia 357 milhões de armas registradas nas mãos dos norte-americanos foi extraído de uma reportagem do jornal The Washington Post, publicada em 2015.
A estimativa foi feita própria equipe da publicação, a partir de um estudo divulgado pelo Congresso dos Estados Unidos.
No texto, o criminalista Gary Kleck, da Universidade do Estado da Flórida, concorda com o método adotado. Outro entrevistado, Philip J. Cook, da Universidade Duke, contudo, chega a um número diferente.
Para ele, a taxa de perda anual de armas nos Estados Unidos é de 1%. A partir daí, estima que haveria 245 milhões de armas nas mãos dos americanos em 2011.
Uma outra análise, publicada no ano passado por pesquisadores das Universidades de Harvard e Northeastern, calculou o número por meio de entrevistas com uma amostragem populacional cuidadosamente selecionada.
A conclusão foi de que haveria 270 milhões de armas com os americanos em 2015. Esse e os outros dados são igualmente válidos – as diferenças se devem aos critérios adotados em cada um dos estudos, que levaram a conclusões distintas.
No Brasil, há uma estimativa de 2007 que foi feita pelo projeto suíço Small Arms Survey. A conclusão foi de que existiam 14,8 milhões de armas nas mãos de civis naquela época. Isso daria um total de 8 armas para cada 100 habitantes, não 7, como afirmou o senador.
O resultado, no entanto, tem uma década. Como não foram feitos novos levantamentos recentes sobre esse tema no país, o mesmo dado continua a ser reproduzido por políticos e especialistas em segurança pública.
Não se sabe, no entanto, se essa quantidade aumentou durante o período, nem em que proporção.
Os dados usados pelo senador Wilder Morais são falsos. Nos Estados Unidos, algumas organizações classificam como ‘tiroteio em massa’ todos os episódios com quatro ou mais pessoas mortas ou feridas.
Entre elas está a ONG Gun Violence Archive, responsável pelo levantamento usado em uma reportagem da CBS, publicada no início de outubro, que o parlamentar cita como fonte no projeto de lei.
Os números mais recentes, disponíveis no site da entidade, contabilizam 293 incidentes de janeiro até o dia 23 de outubro deste ano, com 368 mortos e 1.574 feridos.
É uma quantidade 22% maior do que aquela citada por Morais na proposta. O senador usou ainda um outra informação errada.
Como faltam dois meses para janeiro, é falso dizer que houve 300 vítimas em “todo o ano de 2017”.
No Brasil, não há estatísticas gerais para esse tipo de crime. Por isso, não é possível fazer comparações com outros países.
Seguindo o critério adotado pelo Gun Violence Archive, chacinas e massacres cometidos no país – como o que resultou na morte de dez posseiros na fazenda Santa Lúcia, em Pau d’Arco, no Pará, em maio – poderiam ser consideradas como “tiroteios em massa”.
Ao dizer que são cometidos 120 homicídios com armas de fogo por dia no Brasil, o parlamentar também usou um dado falso.
Ele se baseou em uma reportagem da revista Época publicada no ano passado, que usou como base o Mapa da Violência 2016.
O texto da matéria refere-se à quantidade de mortos por arma de fogo em 2014, o que inclui outras situações além de assassinatos.
Os dados mostram que houve 44.861 mortes por armas de fogo naquele ano, das quais 42.291 foram homicídios por arma de fogo (116 por dia).
De acordo com o Atlas da Violência 2017, do Ipea, que traz os dados mais atuais, ocorreram 41.817 homicídios por armas de fogo no país em 2015 – o que resulta em uma média de 114 mortes por dia. Ambos os números são inferiores ao utilizado pelo senador Wilder Morais.
O senador afirma utilizar estatísticas de 2016 quando, na verdade, os últimos dados disponíveis sobre taxas de homicídio no Brasil são de 2015.
Além disso, o número utilizado por Morais para quantificar a taxa de homicídios nos Estados Unidos é relativo à taxa média entre 2010 e 2015, enquanto o dado apresentado para o Brasil é próximo ao registrado no último Atlas da Violência do Ipea, que aborda apenas o ano de 2015. Por isso, a frase é considerada falsa.
Um dos links citados no texto do senador como fonte para sua afirmação é de uma notícia publicada em 2016 pelo site da revista Época. O texto analisa os dados do Mapa da Violência 2016, que traz números relativos ao ano de 2014. O Mapa, no entanto, traz dados diferentes daquele citado por Morais: em 2014, a taxa brasileira ficou em 21,2 homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes, segundo a publicação.
O dado mais recente – e mais próximo do indicado por Morais em sua alegação – vem do Atlas da Violência 2017 e é referente ao ano de 2015.
De acordo com o estudo, a taxa de homicídios por arma de fogo no Brasil foi de 20,5 ocorrências a cada 100 mil habitantes. O número é 3% inferior ao registrado em 2014.
O senador também cita a fonte do dado utilizado em sua frase para os Estados Unidos. Trata-se de uma notícia publicada pelo jornal USA Today em 2 de outubro de 2017.
No texto, o jornal afirma que a taxa de homicídios por arma de fogo nos Estados Unidos foi de 2,7 ocorrências a cada 100 mil habitantes, em média, no período entre 2010 e 2015.
A notícia credita o dado à organização suíça Small Arms Survey, que publica relatórios sobre o efeito das armas no mundo todo.
A base de dados da Small Arms Survey de fato traz o número apresentado pelo senador e pela notícia publicada no USA Today.
No entanto, trata-se de uma média calculada para um período de cinco anos. Não é possível compará-la ao dado brasileiro relativo a apenas um ano.
A mesma base de dados suíça também registra a taxa média entre 2010 e 2015 para outros países, inclusive o Brasil. Segundo a organização, a taxa no Brasil é de 19,1 ocorrências a cada 100 mil habitantes no período.
O ideal seria, portanto, comparar este número ao índice utilizado pelo senador, já que são dados relativos ao mesmo período e provenientes da mesma fonte.
O pesquisador Daniel Cerqueira, responsável pelo Atlas da Violência, destaca que é errado comparar países com níveis diferentes de desenvolvimento.
“A comparação correta seria entre países desenvolvidos, grupo no qual os Estados Unidos lidera os homicídios por armas de fogo”, critica o pesquisador.
O senador também esconde outro dado importante: nos Estados Unidos, a taxa de homicídios aumentou entre 2015 e 2016, de acordo com dados do FBI.
Esse aumento não entra na estatística do senador, já que ela utiliza uma média feita no período entre 2010 e 2015.
No ano passado, foram registrados 16.459 ocorrências de homicídio no país, um aumento de 8,4% em relação a 2015.
Na justificativa do projeto de lei, o senador utiliza dados de outros países para argumentar que a quantidade de armas de fogo não interfere nas taxas de homicídio de um local.
Para isso, o texto lista cinco dos 15 países com o maior número de armas de fogo registradas por morador, destacando ainda a taxa de homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes.
Os números apresentados são muito similares aos registrados em pesquisas internacionais sobre o tema.
No entanto, falta contexto à afirmação do senador, já que ele inclui dados de apenas cinco dos 15 países com maior prevalência de armas de fogo e desconsidera aspectos sociais e econômicos.
A fonte dos dados, segundo o relatório de Wilder Morais, é uma notícia do site norte-americano Deseret News, que se baseia nos dados de um ranking elaborado pelo jornal The Washington Post.
O ranking, por sua vez, compila estatísticas de diversas fontes, incluindo o UNODC, o datablog do jornal inglês The Guardian e a organização suíça Small Arms Survey, responsável pelas estimativas do número de armas em cada país.
Procurada pelo Truco, a Small Arms Survey indica para consulta seu último relatório sobre quantidade de armas por país, publicado em 2011.
No entanto, a organização destaca que os dados são de 2007 e que, embora outras pesquisas estejam em elaboração, não há previsão para a divulgação de novos dados.
Há estatísticas mais recentes relativas a alguns países, como os Estados Unidos, objeto de um estudo de Harvard que estimou o número de armas em circulação no país em 2015, mas não foram localizados estudos comparativos mais novos que o produzido pela organização suíça.
O ranking elaborado pela entidade, com dados de 2007, reúne os 40 países com maior proporção de armas por moradores.
Morais destaca a relação de homicídios para cada 100 mil habitantes de apenas cinco dentre os 15 primeiros, sem apontar de quando são os números utilizados.
O Truco comparou os dados do Small Arms Survey com os dados indicados por Morais para os cinco países selecionados:
País | Armas de fogo a cada 100 habitantes (2007) | Taxa de homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes (média entre 2010 e 2015) | Armas de fogo a cada 100 habitantes (segundo Morais) | Taxa de homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes (segundo Morais) |
Uruguai | 32 | 3,5 | 31 | 2,80 |
Canadá | 31 | 0,5 | 30 | 0,51 |
Áustria | 30 | 0,1 | 30 | 0,22 |
Islândia | 30 | 0 | 33 | 0 |
Alemanha | 30 | 0,1 | 30 | 0,19 |
Nota-se que, embora alguns números estejam incorretos, os dados apresentados por Morais são similares aos registrados pelo estudo da Small Arms Survey.
A maior discrepância está na taxa de homicídios por arma de fogo registrada no Uruguai: a entidade suíça contabiliza 3,5, enquanto Morais aponta 2,8 ocorrências a cada 100 mil habitantes em seu projeto de lei.
Uma análise dos dados de todos os 15 países, e não apenas dos cinco selecionados por Morais, revela uma tendência similar à apontada pelo senador.
A maior parte dos países com altas taxas de armas de fogo tem taxas de homicídios por arma de fogo relativamente baixas.
País | Armas de fogo a cada 100 habitantes (2007) | Taxa de homicídios por arma de fogo a cada 100 mil habitantes (média entre 2010 e 2015) |
Estados Unidos | 89 | 2,7 |
Iêmen | 55 | 4,4** |
Suíça | 46 | 0,2 |
Finlândia | 45 | 0,3 |
Chipre | 36 | 0,5 |
Arábia Saudita | 35 | 4,3 |
Iraque | 34 | 8,3 |
Uruguai | 32 | 3,5 |
Canadá | 31 | 0,5 |
Áustria | 30 | 0,1 |
Islândia | 30 | 0 |
Alemanha | 30 | 0,1 |
Kuwait | 25 | 2,2* |
Nova Zelândia | 23 | 0,1*** |
Grécia | 23 | 0,5 |
Daniel Cerqueira, do Ipea, destaca que Wilder Morais também ignora o contexto social e econômico dos 15 países da lista.
Um dos trabalhos publicados por Cerqueira tem como um de seus objetivos isolar fatores econômicos e sociais para calcular apenas o impacto das armas de fogo na criminalidade.
“Existem vários aspectos que influenciam na violência, desde taxas de escolaridade até a proliferação do tráfico de drogas. A violência pode aumentar ou diminuir de acordo com esses fatores, e isso não tem nada a ver com a eficácia do desarmamento”, esclareceu, em entrevista ao Truco em julho de 2017.
“É necessário isolar esses fatores em estudos sérios para concluir qual é, de fato, o efeito da arma de fogo nas taxas de criminalidade.”
O economista, em sua tese de doutorado, vencedora do 33º Prêmio BNDES de Economia, demonstra matematicamente que a proliferação de armas de fogo é um fator crucial para o aumento da criminalidade.
“Um aumento de 1% na difusão de armas de fogo nas cidades causa um crescimento muito maior, de cerca de 2%, na taxa de homicídios do município”, atesta a tese.
O senador Wilder Morais baseou-se em uma reportagem publicada pelo jornal O Globo para defender a ideia de que os estados brasileiros com mais armas registradas têm menores taxas de homicídios.
O texto do projeto de lei reproduz o que está na matéria, escrita com base em dados de 2008 do Ministério da Justiça e do Mapa da Violência 2011.
O parlamentar tenta provar que lugares com mais armas não são necessariamente mais violentos, mas os dados não permitem essa conclusão. A frase do Estatuto do Armamento foi classificada como distorcida.
A comparação leva em conta a taxa de homicídios, que inclui todas as mortes classificadas dessa forma, como esfaqueamentos. A taxa de homicídios por armas de fogo é sempre mais baixa.
Isso torna a correlação entre as mortes e a quantidade de armas de fogo incorreta, uma vez que elas não foram responsáveis por todos os óbitos registrados em 2008 nos lugares citados.
Entrevistado na reportagem do Globo, o coordenador do Mapa da Violência, Júlio Jacobo Waiselfisz destaca que a relação entre armas legais e número de homicídios não é sentida em alguns estados porque há também muitas armas ilegais no país.
Dados do projeto suíço Small Arms Survey confirmam isso. A análise estimou a existência de 9,5 milhões de armas ilegais nas mãos de civis no Brasil em 2007, contra 5,3 milhões de legalizadas.
Ou seja, 64% do total não teria registro. Sem saber onde estão, não é possível definir em que estados há mais ou menos armas no país.
De acordo com Waiselfisz, diferenças sociais e econômicas entre os estados também explicam a disparidade dos índices.
“Estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul têm indicadores bem melhores do que a média nacional. Isso se reflete nos dados de violência”, disse o pesquisador na reportagem. É o que também foi apontado ao Truco por Daniel Cerqueira, do Ipea.
É incorreto afirmar que “não há quaisquer dados objetivos que apontem no sentido da redução dos índices de violência” desde a promulgação do Estatuto do Desarmamento.
Os números do Atlas da Violência 2017 mostram redução no índice de homicídios no Brasil em pelo menos cinco ocasiões: de 2003 para 2004, de 2004 para 2005, de 2006 para 2007, de 2010 para 2011 e de 2014 para 2015. Entre 2014 e 2015, último ano que o Atlas abrange, a queda foi de 2,3%.
O índice de homicídios por arma de fogo também registrou redução. O Atlas atesta que no período imediatamente posterior à aprovação do Estatuto de Desarmamento, entre 2003 e 2007, houve queda nas mortes por armas de fogo no Brasil.
No ano de 2013, quando o estatuto completou dez anos, a quantidade de homicídios com armas de fogo no país havia caído 12,6% em relação a 2003, quando a lei foi sancionada.
O senador também afirma que, desde a entrada em vigor do estatuto, “o número total de homicídios no Brasil apresentou um aumento de 20%”.
O Estatuto do Desarmamento foi sancionado pelo presidente Lula no dia 23 de dezembro de 2003. A lei entrou em vigor no dia seguinte. Naquele ano, o Atlas da Violência registrou 52.534 homicídios no país.
Em 2015, último ano que a pesquisa contabiliza, foram 59.080 ocorrências. Trata-se de um aumento de 12,3% no número total de homicídios, inferior ao incremento de 20% defendido por Morais em sua afirmação.
Além disso, não é possível dizer que o número total de assassinatos chegou à marca de 60 mil no ano de 2016, como afirma o projeto de lei.
Isto porque os últimos dados disponíveis para consulta são relativos ao ano de 2015, quando foram registrados 59.080 homicídios em território brasileiro. Portanto, a frase foi classificada como falsa.
Um relatório feito pela Fundação Friedrich Ebert em parceria com o Instituto Sou da Paz e divulgado em 2015 traz outros dados que sugerem que as campanhas de desarmamento tiveram bons resultados, ao contrário do que alega o PLS 378/2017.
O documento conclui que “o Estatuto do Desarmamento foi um fator importante para reverter o crescimento acelerado das mortes por arma de fogo no Brasil” e atesta que, “entre 1993 e 2003 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, cometidos com armas de fogo, crescia aproximadamente 6,9% ao ano” mas que, a partir de 2004, “houve uma clara reversão de tendência, com o crescimento caindo para 0,3% ao ano”.
Texto cedido pela Agência Pública.