Rio de Janeiro: Especialistas e lideranças de favelas do Rio estão diante de dados ainda pouco estudados que já indicam que há algo errado (picture alliance / Colaborador/Getty Images)
Agência O Globo
Publicado em 5 de julho de 2020 às 11h40.
Em meio à pandemia, as comunidades cariocas veem o coronavírus se espalhar, mas as vítimas da doença permanecem quase invisíveis ao sistema epidemiológico.
Especialistas e lideranças de favelas do Rio estão diante de dados ainda pouco estudados que já indicam que há algo errado — ou ainda oculto — sobre os caminhos da covid-19 nesses territórios à margem dos serviços de saúde, onde se temia uma tragédia.
Enquanto o município tem uma taxa média de letalidade de 11% — ainda mais baixa em bairros da Zona Sul —, as mortes ultrapassaram 20% dos casos confirmados na Maré, Rocinha, Cidade de Deus, em Acari e na Vila Kennedy. Sinal de que muitos doentes sequer foram identificados pelo sistema de Saúde.
Além da subnotificação de diagnósticos, o baixo número de óbitos no Alemão, em relação ao resto da cidade, ainda não foi explicado. Com mais de 70 mil habitantes, um dos maiores complexos da capital teve, pelas estatísticas oficiais, 12 infectados e cinco pessoas mortas pelo coronavírus.
A realidade obscura preocupa e deixa dúvidas sobre como será o impacto da doença numa possível “segunda onda”, principalmente com o fim gradual da quarentena.
"Não dá para confiar nesses números, o que é um problema para o processo de flexibilização. Nas áreas pobres, onde a maioria depende de exames na rede pública, a subnotificação é maior. Basicamente, só internados em estado grave são diagnosticados", diz Alberto Chebabo, infectologista da UFRJ, explicando que a falta de testes influencia as altas taxas de letalidade (razão do número de óbitos em relação aos casos) nas comunidades.
As mortes foram registradas, mas, sem ter os casos identificados, a conta é alterada.
Somente na Maré, 27 pessoas adoeceram, entre abril e maio, sem sequer procurarem atendimento médico. A “pandemia oculta” das favelas foi alvo de uma pesquisa da prefeitura em parceria com o Ibope.
Apenas numa amostragem de testes realizados em quatro lugares — Rocinha, Cidade de Deus, Maré e Rio das Pedras — foi possível projetar 90,2 mil infectados que nunca apareceram nas contas das secretarias de Saúde do estado e do município. Mas, na ponta do lápis, as três primeiras comunidade só tiveram, até sexta-feira, 857 casos confirmados e 186 mortes.
Relatos de moradores e de ONGs — que tomaram a frente das ações de combate ao vírus diante do vazio de políticas públicas — ajudam a contar a história real do coronavírus nessas regiões. No Alemão, o Painel das Comunidades já mostra uma discrepância entre o que o poder público sabe e o que de fato aconteceu.
Em vez de 12 casos e cinco mortes, teriam havido 108 diagnósticos e 37 óbitos. Rio das Pedras — uma das grandes favelas da Zona Oeste, com uma rotina agitada por 140 mil moradores e 3.700 empreendedores — tem outra razão para aparecer pouco nas estatísticas.
Seus doentes e mortos foram computados no Itanhangá, em Jacarepaguá ou até mesmo na Barra da Tijuca. A prefeitura calcula que ali 25% da população tiveram coronavírus. Mais não se sabe.
Com a avalanche de pequenos negócios que fecharam e legiões de trabalhadores que perderam o emprego, muitos deles garçons, cozinheiros e empregadas domésticas, a ONG SocialBit de Rio das Pedras, antes voltada à tecnologia, passou a distribuir cestas básicas.
Érika Alves conta que a organização tentou realizar seu próprio painel sobre a pandemia, mas esbarrou em resistências que não imaginava.
"Muitas famílias se sentem constrangidas de falar que há um doente em casa. Simplesmente se isolam, talvez por medo de serem estigmatizadas", conta, afirmando que há uma negação da doença, o que faz crescer os relatos de pneumonia e problema cardíaco.
A falta de testes faz com que muitas pessoas sequer saibam se tiveram coronavírus. A manicure Marília Paixão, de 57 anos, passou mal por 25 dias, com falta de ar e perda de paladar. Apesar de ter procurado a rede de saúde quatro vezes, não fez exames. Somente entre os amigos, ela conta que 20 pessoas morreram.
"Tive muitas perdas, fiquei sem trabalhar meses e ainda vivo com a incerteza sobre ter tido ou não a doença", diz.
Na Maré — onde oficialmente há 357 casos de Covid-19 e 80 óbitos —, o boletim “De Olho no Corona!”, da Redes da Maré, traduz melhor o que tem sido o dia a dia de seus 141 mil moradores.
O último divulgado apontava que, até 29 de junho, havia 711 casos sintomáticos suspeitos, ainda sem testes, e 29 óbitos também sem causa confirmada. Coordenadora do projeto, Lidiane Malanquini afirma que o pico da doença foi em maio.
Na primeira metade de junho, houve uma queda, mas, com o afrouxamento da quarentena, a doença voltou a crescer em junho:
"A cada três sintomáticos que identificamos, só um tem comprovação oficial. Sem testes, não podemos nem dimensionar a capacidade para atender os pacientes".
Com a subnotificação, que esconde a gravidade da Covid-19 nessas áreas, vem também uma dificuldade de convencer a população local sobre os riscos e a necessidade de aderir a regras de distanciamento e proteção, como uso de máscaras.
A ativista Magda Gomes, do coletivo A Rocinha Resiste, não tem dúvidas de que a pandemia terá efeitos duradouros, com novas ondas.
Junto com outras lideranças comunitárias, ela trabalha com pesquisadores na criação de um plano específico de combate à Covid-19 nas favelas. A proposta foi apresentada à Secretaria municipal de Saúde, que não encampou a ideia.
Agora, está em fase final para aprovação de um financiamento da Assembleia Legislativa do Rio, com coordenação executiva da Fiocruz e participação da UFRJ, UFF, Uerj, UniRio e PUC-Rio.
"Com as pesquisas, será possível saber o que está acontecendo de verdade nesses lugares", ressalta a sanitarista e professora Ligia Bahia, da UFRJ.
Também integrante do projeto, o sociólogo Marcelo Burgos, da PUC, explica que, a princípio, a ideia é focar em cinco comunidades, entre elas Rocinha, Maré e Alemão, com polos para atender pacientes com Covid-19 e centros de isolamento assistido, além de apoio social.
"Muitas pessoas ficaram doentes e morreram em casa. Elas viveram solitariamente a doença. E vamos viver um período crítico, de inverno e efeitos da flexibilização do isolamento", diz Burgos, que prevê custo de R$ 16 milhões para a iniciativa.
A prefeitura informou ter iniciado em 1º de julho a segunda fase de testagens em comunidades. Afirma ainda ter realizado outras ações, como o monitoramento por telefone dos grupos de risco. Diz que é preciso levar em conta uma parcela de contaminados, mas assintomáticos, que podem não ser notificados, o que, segundo ela, não acontece apenas em favelas.