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Crise da Enel não deve afetar outros processos de concessão, diz especialista

Para o advogado Bruno Aurélio, contratos antigos precisam ser revistos, mas governo precisa prever como operadoras vão custear novas obrigações

Árvore caída sobre fiação no Campo Belo, em São Paulo (@sergolesilva no X/Reprodução)

Árvore caída sobre fiação no Campo Belo, em São Paulo (@sergolesilva no X/Reprodução)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 8 de novembro de 2023 às 13h36.

A crise de falta de energia envolvendo a Enel em São Paulo não deve atrasar outros processos de concessão e privatização em debate no país, avalia Bruno Aurélio, especialista em concessões, sócio do escritório Demarest e doutor em direito público pela PUC-SP. 

Para ele, o problema ocorrido em São Paulo, onde milhares de pessoas seguem sem energia por dias após uma chuva forte que atingiu a cidade, foi algo pontual e que não coloca em xeque o modelo de concessões, que trouxe melhorias para as rodovias e está avançando na área de saneamento básico.

Aurélio pondera, no entanto, que os contratos precisam ser atualizados para incluir novas demandas surgidas com o passar do tempo, desde que novas obrigações sejam acompanhadas de receitas correspondentes. Leia abaixo os principais pontos da conversa dele com a EXAME.

Estamos em um momento de debate de concessões de serviços de saneamento, como no caso da Sabesp, e de renegociação de contratos de rodovias. A crise na Enel pode afetar outros processos de concessão?

Não considero. O que aconteceu foi um evento um pouco além do que normalmente acontece. E isso também é regulado por contrato. Se você tiver, em um histórico de dez anos, nenhum tipo de fatos assim, por exemplo. 

Se a gente for pensar nos níveis de atendimento da distribuição de energia, vis a vis o que era no passado, tem melhoria. Mesma coisa na comunicaçao. Antes a linha telefônica era declarada no Imposto de Renda. 

Nas rodovias, é simples. Você quer saber se concessão é bom? Sai de São Paulo e entra no Sul de Minas. Você vai passar em uma buraqueira danada. Acho melhor pagar pedágio do que trocar amortecedor. 

No saneamento básico é pior. Você tem componentes estaduais há muito tempo, que cobram tarifas similares aos [serviços] geridos localmente e não tem cobrança dos usuários. Tem aí uma questão interessante de sensibilidade. Quando é o Estado prestando você fala ‘ah, é o Estado. Isso é meio ruim mesmo’. Quando Tem uma empresa privada, as pessoas cobram mudanças do dia pra noite. 

Como avalia o contrato da Enel em São Paulo? Por ser mais antigo, ele é de fato muito diferente dos atuais?

Existem diferentes gerações de contratos e maturidades de contrato. Eu vi o contrato específico da Enel de distribuição há bastante tempo. De modo geral, são contratos de conteúdo mais enxuto, de obrigações mais gerais, e não necessariamente com nível de detalhamento e de obrigações de inovação tecnológica como os atuais. 

Os contratos de concessão são firmados dentro de uma estrutura de investimentos, que normalmente são concentrados em um determinado período e depois renovados. Em contratos dessa natureza, você tem obrigações definidas que, se não forem alteradas, aquele contrato pode ficar não necessariamente aderente a realidade que a gente precisa hoje para atender as demandas da sociedade.

Há espaço para rever estes contratos de energia? O governo federal está renegociando contratos de rodovias. Seria possível fazer algo similar?

Os dois tipos de contrato tem a mesma raiz. Há uma lógica de obrigação de equilíbrio econômico-financeiro, o que significa que eu posso fazer revisões. Alguns contratos até preveem revisões a cada três ou cinco anos ou extraordinárias, só que isso tem de ser acompanhado com um correspondente equilíbrio econômico. 

Existe uma equação entre obrigações e um retorno estimado. O que as pessoas confundem muitas vezes, e isso talvez seja uma tradição por ter um Estado grande, é que as empresas privadas, quando entram para fazer projetos de serviço público, entram com uma obrigação determinada e com um retorno potencial estimado. Ela não está lá para fazer qualquer coisa que vier, em qualquer circunstância. Tem que parar de achar que se há um dinheiro de um terceiro, eu posso gastar. Seria a mesma coisa se fosse o próprio Estado. Ele teria de tirar dinheiro de algum lugar para botar em outro. 

O contrato pode ser revisto ou atualizado de algumas maneiras. Você pode pagar indenização, estender o prazo de concessão, pode aumentar tarifa. Só que isso vai direto no bolso do consumidor. Você tem que negociar e estabelecer alguma ferramenta no qual ele consiga ter receita correspondente às novas obrigações que vão ser impostas.

Infelizmente no Brasil, a gente tem uma perspectiva quase de persecução entre quem toma decisões, e você não consegue sair do lugar. Vai fazer um reequilíbrio de contrato para depois vir o TCU e o Ministério Público falar que foi uma ilegalidade. O CPF [do gestor] vai estar na conta.

A Enel também foi criticada por dispensar parte dos funcionários e ter lucros expressivos. Haveria espaço nos contratos para exigir um número determinado de colaboradores ou reinvestimento de lucros, por exemplo?

Sem falar sobre o caso concreto [da Enel], aumentar o lucro significa que você pode ter gerado uma maior eficiência. O contrato de concessão é um contrato de fim, e não de meio. Você não está comprando colocar pessoas, mas contratando um resultado. Os contratos precisam ter índices de qualidade e desempenho que você tem que atender. Um exemplo: nas rodovias, se houver um acidente, uma ambulância precisa chegar em até x minutos. Se não chega, pode tomar multa. Então você tem que ter uma estrutura para atender às exigências. Se você for punido demasiadamente, pode ter o contrato interrompido por execução parcial. E tem multas pesadíssimas.

A empresa pode ter demitido porque criou eficiência. Hoje você consegue ter uma capacidade de gerenciamento por GPS que não tinha antes. Se você limitasse os lucros, teria um contrato de renda fixa: eu só posso ganhar isso, mas não posso perder mais do que isso. Ninguém faria nada diferente e ninguém entraria nesse tipo de situação. 

Uma questão é: os índices de qualidade estão atualizados? Vou dar um exemplo: no terminal Tietê, em São Paulo, ele tinha, dentro dos índices de satisfação do usuário, um item sobre percepção de limpeza. Eles perdiam muito nisso, então triplicaram a equipe de limpeza, mas as respostas não melhoravam. Aí fizeram uma pesquisa diferente, perguntando as razões da percepção. Aí disseram ‘é meio escuro’ e isso dava uma sensação de sujeira. Então trocaram o piso escuro por um claro, que diminuiu o custo de manutenção e aumentou a percepção de limpeza. 

Como vê a questão da demanda por aterramento dos fios? Isso poderia ser incluído em novos contratos?

Em 1998 [quando contratos de concessões de energia foram assinados], o enterramento de cabos talvez não era uma discussão. Você quer incrementar essa obrigação contratual? Tudo bem. Só que é uma obra caríssima, embora nada de outro mundo. Se tem umaintervenção importante que não estava prevista no contrato, ele tem que ser recomposto.

Também existe aqui uma questão de sobreposição. Você tem empresas que utilizam o poste: a iluminação pública, que é municipal, empresas de fibra, de comunicações e outras que estão penduradas ali por questões variadas, e que envolve a Anatel. O município pode fazer o aterramento, mas com custo próprio. Na Oscar Freire [rua de São Paulo], foi feita uma reunião com a associação de bairro, que fez o aterramento. No Rio de Janeiro, o aterramento foi feito com a companhia que fazia a gestão do Porto Maravilha. Dá pra fazer, mas isso tem um custo de obra. Se não estava previsto no contrato, eu não posso obrigá-la a fazer.

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