Como as semelhanças entre ambos os presidentes podem mostrar o Brasil de 2022? (Kevin Lamarque/Reuters)
Karina Souza
Publicado em 24 de janeiro de 2021 às 15h06.
Última atualização em 24 de janeiro de 2021 às 15h07.
A última eleição presidencial norte-americana foi histórica. Do acompanhamento diário da apuração dos votos em papel -- e sua demora por causa da pandemia –, passando pelas denúncias não comprovadas de fraude, a invasão ao Capitólio e chegando, enfim, à posse de Joe Biden, não faltaram olhos e ouvidos atentos ao que acontece em uma das maiores potências econômicas do mundo.
No Brasil, além da cobertura propriamente dita dos fatos que aconteciam na América do Norte, o acompanhamento diário da reação do presidente Jair Bolsonaro à nova posse também ocupou a mídia. Impossível deixar de notar que, enquanto grande parte dos líderes mundiais cumprimentou Joe Biden pela posse logo após o fim da apuração dos votos, Bolsonaro ficou “no fim da fila” para reconhecer a vitória do presidente eleito – um gesto que segue os passos do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Com as semelhanças políticas entre ambos – e um cenário turbulento pós-eleições nos Estados Unidos – uma questão permanece: o que as eleições norte-americanas têm a mostrar para o Brasil de 2022?
Para responder a esta e outras questões, a EXAME conversou com Guilherme Casarões, cientista político, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenador do Observatório da Extrema Direita, a fim de traçar conjecturas sobre o que vem por aí. Veja abaixo o resultado dessa conversa:
EXAME: A invasão do Capitólio foi, sem dúvida, algo histórico na democracia norte-americana. Na sua opinião, quais as chances de a gente ter em 2022 movimentos iguais a esse?
Guilherme Casarões: Na minha opinião, temos boas chances de ver algo parecido com isso, por algumas razões. A primeira delas é: o Brasil importa muitas das práticas da extrema-direita americana, o que vem ganhando força desde a eleição de Donald Trump em 2016. Por exemplo, aqui no Brasil já vem sendo plantada a tese da fraude em massa eleitoral pelo próprio Bolsonaro, para que seus apoiadores já desconfiem do processo caso ele não vença no primeiro turno.
Além disso, apesar de o sistema eleitoral americano ser muito diferente do brasileiro, eu acredito que lá existe ainda tem um respeito histórico ao congresso americano – o que, aqui no Brasil, não existe nesse grau. Aqui, o Congresso é muito associado à velha política, corrupção, com o “centrão” muito mal visto... existe um conjunto de fatores que torna o brasileiro médio muito desconfiado do Congresso nacional.
Nesse sentido, já existe há algum tempo nas redes bolsonaristas a tese da “Ucranização do Brasil”. Existem várias conotações possíveis dessa expressão: geralmente, fazem referência a uma prática que na Ucrânia se tornou muito comum lá em 2014, que é o povo pegando deputados na rua e jogando os na lata do lixo. Um ato simbólico. Lá na Ucrânia essa prática foi uma coisa muito associada até com movimentos neonazistas, radicais. E que pode ser interpretada como um indício de que o bolsonarismo já vem preparando “respostas” para o Congresso em 2022. Ou seja, não é impossível que algo similar à invasão ao Capitólio aconteça por aqui.
EXAME: A combinação da desconfiança das instituições como o Congresso com a postura dos bolsonaristas pode colocar a democracia brasileira em xeque?
Guilherme Casarões: Eu acho que sim, a nossa democracia é muito mais jovem e muito mais frágil. A gente teve muitas interrupções ao longo da nossa história e, talvez, na mentalidade do brasileiro médio, a democracia não seja um valor tão supremo quanto outros valores. Se a gente for pensar na nossa história, o brasileiro médio topou abrir mão de parte dos seus direitos civis e políticos em troca de direitos sociais.
Um exemplo disso é: por que que tanta gente de uma geração mais antiga tem saudade do regime militar? Porque, economicamente, para a maioria, houve uma sensação de que o governo estava ali “próximo das pessoas”, com algumas medidas como o Banco Nacional de Habitação e o próprio “milagre econômico” dos anos 60 e 70. O Brasil estava se endividando loucamente, mas havia políticas sociais que, de alguma forma, nos permitem associar a ideia de que se você tira liberdade das pessoas mas dá direitos sociais, essa troca é aceitável.
Nos Estados Unidos, não é assim, porque como sempre foram uma democracia, eles sempre a trataram como um valor supremo. É muito difícil você encontrar alguém, nos Estados Unidos, que defenda, por exemplo uma ditadura militar. Você pode ver muitas teorias conspiratórias, como a de que o Trump ganhou a eleição e de que o Biden roubou, enfim, mas perceba que eles sempre estão nessa chave de eleição, de voto, de democracia.
EXAME: Bolsonaro ainda tem muito apoio político no Brasil. Na sua opinião, existe alguma chance de que uma vacinação acelerada nos Estados Unidos enquanto a gente tem essa demora para a chegada das doses possa impactar a gestão atual de alguma forma?
Guilherme Casarões: Eu acho que houve alguns momentos na condução dessa pandemia em que eu e outros especialistas avaliávamos que a reputação do Bolsonaro iria ruir em algum momento. É muito difícil continuar sendo populista num contexto de crise sanitária em que você precisa da ciência, da moderação, da racionalidade para resolver os problemas. Todas essas previsões foram por água abaixo, porque durante os meses mais críticos da pandemia a aprovação começou a subir.
O que é interessante é que desde o começo o Bolsonaro tentou atacar a questão da opinião pública com duas coisas: Primeiro, vendendo a ideia de que é um presidente preocupado com a vida das pessoas tanto na saúde quanto na economia. Ele falava várias vezes que não olhava só para questão da saúde, por exemplo. Num país que tem 40 milhões de autônomos e muitos trabalhadores informais esse discurso fez muita diferença. Ao mesmo tempo, Bolsonaro promovia “curas milagrosas” que em algum momento pareciam promissoras, como a cloroquina.
Em relação à vacina, o problema é que o próprio presidente, mas sobretudo as redes bolsonaristas, bateram muito na tecla da desconfiança da vacina, de que não tem que ser obrigatória, resgatando a ideia do tal “tratamento precoce”, como Pazuello defendeu recentemente.
Eu não sei se pro brasileiro médio que, de novo, pessoas que não estão acompanhando ou que se informam só pelo WhatsApp, essa demora da vacina é irrelevante, entende? Porque vacina não é importante, defende-se a ideia de que as pessoas devem prestar atenção é no “tratamento precoce”, etc. Então acho que tem aí uma série de coisas que o Bolsonaro está tentando inverter. Faz parte do script populista, né? Mas de alguma forma acho que isso tem um impacto importante no processo político.
EXAME: Como você vê as relações da diplomacia brasileira daqui para frente? Há chances de substituírem Ernesto Araújo, com os desdobramentos da vacina, por exemplo?
Guilherme Casarões: A verdade é que o Ernesto já estava “marcado” antes mesmo da pandemia ou desses desdobramentos da vacina porque, com a vitória de Joe Biden, alguém que foi elevado ao cargo de chanceler porque dizia que Trump era o salvador do Ocidente teria problemas. A presença dele é incoerente. Além disso, não é alguém desconhecido, pelo contrário, faz questão de se expor, dar entrevistas polêmicas. Então acho que tem muita coisa nessa história que fragiliza a posição do Ernesto Araújo, não é só a questão da vacina.
Por exemplo, a gente viu até, completamente descolado do contexto da vacina, a Kátia Abreu, da base do Bolsonaro no Senado, fazendo sabatina de indicado do Ernesto, puxando coro para negarem. Foi o terceiro diplomata negado para um posto em sabatina do Senado na história do Brasil, é algo histórico.
Além disso, existe a questão de a própria plataforma externa do Biden. Quando Biden foi eleito, disse: tenho quatro prioridades pro meu início de governo: Justiça Racial, enfrentamento da crise econômica, enfrentamento da covid-19 e mudanças climáticas. Na hora em que ele diz que mudanças climáticas são prioridade número zero, o Brasil vira quase automaticamente um inimigo dos Estados Unidos.
EXAME: Quais são as consequências econômicas disso?
Guilherme Casarões: China, EUA e Europa estão antagonizando o Brasil. Por razões diferentes, mas o Brasil comprou brigas com os três principais parceiros econômicos e políticos, de modo que não é possível que o Brasil – eu não consigo vislumbrar, por exemplo – para se livrar das pressões norte-americanas, tome o lado da China. Isso não vai acontecer porque o Bolsonaro hostilizou a China e o Biden por questões ideológicas. Fica muito difícil agora ele voltar atrás e falar que vai ser “amigo da China” para se afastar dos Estados Unidos.
O próprio governo Bolsonaro, em função dessa estreiteza ideológica acabou se colocando nessa situação de isolamento. E aí as consequências podem vir tanto de maneira indireta, que é: o mundo pouco a pouco se afastando dos fornecedores brasileiros, impondo uma série de restrições a certos produtos brasileiros por causa de meio ambiente, por causa de barreiras sanitárias etc.
E, uma outra coisa que não vai chegar de uma hora para outra mas que pode acontecer também é a gente chegar num caso limite que é o de os Estados Unidos começarem a impor restrições ou sanções econômicas em função da política ambiental brasileira.
EXAME: Nos EUA, a oposição ao Trump foi de Joe Biden, um candidato que não tem um perfil tão forte de engajar multidões, mas é mais conhecido politicamente. No Brasil, você acha que temos chances de ter adversários com esse perfil em 2022?
Guilherme Casarões: Eu acho que tem uma diferença fundamental nos dois casos porque nos Estados Unidos você não tem uma tradição populista. O Trump, a rigor, é o primeiro presidente populista dos EUA. O discurso pegou porque os Estados Unidos estão passando por uma transformação muito grande em termos econômicos e sociais, tem os chamados “perdedores da globalização”, essa turma sobretudo branca que empobreceu muito e com quem o Trump conseguiu criar um vínculo.
Agora, tradicionalmente, o país teve presidentes carismáticos, como Obama, Clinton, George W. Bush (filho), mas também teve presidentes terrivelmente apáticos, como Jimmy Carter e o próprio Lyndon Johnson. Ou seja, não há na história americana necessariamente uma relação entre um discurso populista ou uma presença super carismática e a viabilidade eleitoral de uma determinada candidatura.
Agora, no caso do Brasil, isso é diferente porque essa coisa do carisma e sobretudo de uma retórica mais populista sempre foi presente no processo eleitoral. Se a pessoa não é carismática, você inventa, o que foi muito presente no marketing político com a Dilma, por exemplo.
Não tem como prever o que vai acontecer até 2022, mas olhando hoje, eu acho que são necessárias duas coisas pra alguém conseguir enfrentar Bolsonaro com sucesso: vai ter que ser alguém mais alinhado ao centro. Dificilmente um candidato de extrema esquerda ou de esquerda mais marcada vai conseguir vencer o bolsonarismo, até por toda a trajetória de antipetismo e uma certa resistência à esquerda no Brasil. O Brasil não é um país progressista, é um país que elegeu o Lula quando o Lula se moderou.
Além disso, terá de ser alguém que consiga de alguma forma ocupar um espaço significativo na narrativa política e aproximação com os eleitores. Uma das grandes vitórias de Bolsonaro foi o fato de que era muito mais habilidoso e transitava muito melhor em redes sociais do que seus adversários. E claro a questão de redes sociais não é só de se comunicar, mas sim de criar uma narrativa.
O que não vai dar certo: alguém muito ideologicamente marcado ou alguém que tente traduzir a política de forma muito acadêmica, muito complexa e que não consiga entender a importância de ter um discurso mais direto para as pessoas.