Agência de notícias
Publicado em 15 de junho de 2024 às 10h21.
Se o projeto de lei que equipara o aborto após a 22º semana de gestação ao crime de homicídio avançar, o país passará a integrar uma pequena lista de nações com penas superlativas de prisão às mulheres que interrompem a gravidez. Hoje, o Brasil compõe o grupo — majoritário — de nações que preveem até cinco anos de privação de liberdade quando o procedimento é feito fora das condições legais. A pena máxima, aqui, é de três anos, enquanto o projeto de lei busca equiparar a prática ao homicídio e pode render até 20 anos de detenção.
Com pedido de urgência aprovado na Câmara dos Deputados, o texto propõe duas principais mudanças. Uma é a fixação em 22 semanas como prazo máximo para os abortos legais — casos de estupro, risco de vida à mulher e má formação do feto. Depois desse período, a mulher passaria a ficar suscetível a penas duras, seja qual for o motivo do aborto. Esse segundo ponto do projeto foi o que despertou maior controvérsia e escancarou o retrocesso na pauta, segundo os críticos, já que a punição à mulher seria maior do que a aplicada a um estuprador, que pode pegar, no máximo, dez anos de prisão.
O relatório mais atualizado do jornal científico BMJ Global Health sobre aborto, de 2022, analisa as penas que os países determinam para quem o pratica em situações alheias às permitidas por cada um deles. A maioria prevê algum tipo de punição, mesmo alguns dos mais progressistas na pauta. Pouquíssimos, no entanto, no nível que a Câmara brasileira pretende impor.
São 91 nações que estipulam até cinco anos de prisão; 25 que preveem entre cinco e dez anos; dois (Guiné Equatorial e Zâmbia) entre dez anos e prisão perpétua; há outros seis que falam em prisão perpétua; e três que, apesar de cogitar prisões, não fixam uma pena máxima na legislação. Com o PL, portanto, o Brasil passaria a figurar na enxuta lista de menos de dez países que determinam mais de dez anos de prisão para as mulheres.
O levantamento deixa de fora algumas nações, sobretudo as da América do Norte e o Reino Unido, por causa da falta de uniformidade entre diferentes estados dos países. Essa característica é marcante nos Estados Unidos, onde meninas e mulheres costumam viajar de um estado para outro em busca de acesso ao aborto legal.
"O projeto (da Câmara) vai criminalizar mulheres vítimas de estupro, com penas maiores do que a do estupro que sofreram. A consequência imediata e óbvia é o desestímulo à procura de serviços de saúde por medo de criminalização, podendo gerar impunidade para violadores e mortes para mulheres que vão buscar aborto inseguro", observa a advogada Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP.
Segundo a pesquisadora, o projeto é especialmente preocupante para casos de estupro de crianças e adolescentes.
"Diante de dados que mostram que a grande maioria dos estupros vitima meninas de dez a 14 anos, violentadas por seus parentes, trata-se de um projeto que vai sobretudo forçar a gravidez decorrente de estupro em crianças e adolescentes".
A própria ONU, diz Eloísa, avalia que a gestação decorrente de violência sexual é ato equivalente à tortura.
Além dos africanos Guiné Equatorial e Zâmbia, os seis países com previsões de prisão superior a dez anos, segundo o relatório, são pequenas nações caribenhas ou da Oceania: Quiribati, Ilhas Salomão, Tuvalu, Barbados, Belize e Jamaica.
Outro exemplo de penas superlativas é El Salvador, na América Central, onde o aborto é proibido em todas as circunstâncias desde 1998 e as mulheres costumam ser julgadas por homicídio qualificado quando o praticam. Mesmo pessoas que passaram por aborto espontâneo ou tiveram complicações obstétricas chegaram a sofrer condenações de até 30 anos de prisão, apesar de a legislação falar em penas de dois a oito anos.
A América Latina como um todo, inclusive, é a região em que a maior parcela de países prevê punições às mulheres que abortam fora dos cenários autorizados: 97%, ante 91% da África, 85% da Oceania, 67% da Ásia e 41% da Europa, mostra o relatório. Cuba, aqui, é exceção: além do aborto legal, não há criminalização das mulheres.
Mesmo em países da América do Sul que avançaram recentemente na legislação sobre aborto, como Argentina, Uruguai e Colômbia, os casos realizados em circunstâncias diferentes das permitidas podem render penas. Em nenhum dos três, contudo, elas passam de três anos de prisão.
Os europeus são os mais progressistas na pauta do aborto. Além de praticamente todo o continente permitir o procedimento, as punições nos casos fora da lei são baixas. Em Portugal, assim como na maior economia do continente, Alemanha, a pena vai até três anos de prisão.
Já a França, o país mais avançado no tema, não prevê detenção. Os franceses, além disso, foram os primeiros do mundo a incluir o direito ao aborto na Constituição — uma forma de proteger a medida diante de movimentos conservadores mundo afora. Durante reunião do G7, esta semana, o presidente francês, Emmanuel Macron, destacou o movimento do país para se contrapor a países que discordaram de formas de abordar o direito ao aborto no documento produzido na reunião multilateral.
A professora Eloísa Machado coordena, na FGV, o projeto Supremo em Pauta. Na avaliação dela, a atual configuração do Congresso Nacional permite vislumbrar uma aprovação do PL. A partir do eventual endosso dos parlamentares, no entanto, a advogada espera, “no mínimo”, um veto presidencial ou, em último caso, que o STF barre o texto. Dos 33 deputados que assinam a autoria da proposta, 18 são do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro.
"Já há decisões reconhecendo a importância do aborto legal em vários casos, inclusive decisões reconhecendo que as hipóteses deveriam ser ampliadas. Alguém tem que ter o compromisso com a Constituição e, se o Congresso decidir ignorar seus deveres, o elementar é que o STF cumpra seu papel e derrube essa atrocidade", afirma.
O Supremo tem sido um importante aliado de setores progressistas na pauta do aborto. Em maio, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a aplicação da técnica assistolia fetal para interromper casos de gravidez acima de 22 semanas quando houve estupro. A prática consiste em usar medicamentos que interrompem o batimento cardíaco do feto. É recomendada pela Organização Mundial de Saúde e prevista em lei.
O PL em tramitação no Congresso busca o mesmo tipo de restrição que o CFM, mas de forma ainda mais ampla, já que tenta restringir qualquer aborto depois das 22 semanas. Atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal — ou seja, nos casos de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto).