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Colapso da saúde em Belém contrasta com número oficial de casos

Para especialistas, subnotificação explica colapso em hospitais da capital do Estado, que oficialmente tem pouco mais de 2 mil casos confirmados da covid-19

Coronavírus Pará (Agência Pará/Divulgação)

Coronavírus Pará (Agência Pará/Divulgação)

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Clara Cerioni

Publicado em 28 de abril de 2020 às 07h30.

Última atualização em 28 de abril de 2020 às 07h30.

Na quinta-feira passada, os funcionários do Hospital de Campanha de Belém (PA) foram forçados a abrir as portas diante da gritaria de familiares e pessoas que aguardavam notícias de parentes na entrada. A unidade, que recebe apenas pacientes triados em outras unidades, foi obrigada a atender a paciente desmaiada, motivo da aflição dos que estavam à frente do Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, o Hangar, no bairro do Marco, uma casa de eventos e shows convertida em hospital de atendimento para pacientes graves da Covid-19.

Não foi a única cena de desespero diante de um hospital. O sistema de saúde de Belém já entrou em colapso, segundo profissionais da linha de frente de combate ao coronavírus ouvidos no fim da semana passada pela Agência Pública.

“O número de leitos de UTI e de leitos para internação no Norte no geral é muito abaixo da média nacional. E a gente tem a situação que tem hoje”, aponta a epidemiologista Naiza Sá, coordenadora do programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). 

De acordo com informe da Secretaria Municipal de Saúde (Saúde) à imprensa, os apenas 125 leitos de UTI já estavam 100% ocupados na semana passada; 80% com pacientes de Covid-19. Conforme o Datasus, o município possui outros 282 leitos de gestão estadual, mas a Secretaria estadual não fornece os dados de ocupação dessas vagas, informando apenas que em todo Pará a taxa de ocupação é de 79% (a maior concentração de casos é em Belém). Ao todo a região Norte tem 2.334 leitos desse tipo, a menor rede no comparativo com outras regiões.

Grupos de familiares e amigos amontoados em frente ao Hospital de Campanha em busca de notícias de pacientes se tornaram rotina nos últimos dias. “Não tem informação”, contou Nashara Costa Silva, de 33 anos, uma das pessoas que ali estavam na tarde da quinta-feira passada. O grupo vinha de diferentes bairros e municípios da região metropolitana da capital paraense.

Para evitar ainda mais contaminações, eles deveriam ser informados sobre o quadro dos pacientes por mensagens, mas não há esse tipo de serviço. “Não tem remédio. Ninguém sabe o que está acontecendo lá dentro”, diz ela. Além da jovem que desmaiou na entrada do hospital, ainda naquela tarde, outro paciente caiu na portaria antes de conseguir atendimento.

“Pacientes que estão lá dentro conseguem telefones, pedem ajuda à família. Não tem lençol, não tem equipamento”, relatou Nashara, cabeleireira do bairro de Sacramenta. Ela aguardava notícias do irmão, eletricista de 46 anos, que foi encaminhado ao Hangar depois de ter passado quatro dias no Pronto Socorro Mário Pinotti, o PS da travessa 14 de março.

“Eu consegui que ele viesse pra cá por conta própria. No PS da 14, passou quatro dias sem medicação, precisando de respirador, mas não tinha”, contou Nashara, que estava na portaria do Hangar já havia cinco horas sem conseguir notícias do irmão. Os relatos de desmaios, falta de equipamentos e informações se espalham por toda a cidade, da rede municipal à estadual.

Escalada em Belém

O primeiro caso registrado no Pará foi anunciado pelo governo do estado no dia 18 de março. Até o fim daquele mês, foi notificado um total de 34 pessoas com Covid-19. O primeiro óbito foi no dia 1º de abril, mas em apenas sete dias os casos chegaram a 154, com seis mortes confirmadas. E o gráfico do novo coronavírus no Pará disparou.

No dia 17 de março, o governador Helder Barbalho (MDB), que havia dito que o governo possuía um plano de contingência, informou, por meio de sua conta no Twitter, que o Pará tinha “23 leitos de UTI à disposição para o coronavírus, o que demonstra claramente que nós estamos estruturados, preparados, planejados”, finalizando: “Nós estamos preparados para enfrentar o desafio”. No boletim epidemiológico desde domingo, 27, o Pará chegou a 2070 casos e 114 mortes, sendo 48 delas nas últimas 48 horas.

Mas as filas em frente a hospitais, os relatos de profissionais e o elevado índice de mortes por insuficiência respiratória e pneumonia contrariam os números oficiais da Covid-19. Apesar do anúncio do número de casos, as autoridades estaduais não informam o tamanho da fila no Laboratório Central (Lacen), onde foram centralizadas as testagens.

Além disso, o governo não anunciou quantos testes foram adquiridos pela Secretaria de Estado de Saúde (Sespa). Fatores que diminuem o número de infectados nos boletins, colocando o Pará como oitavo estado com mais casos, com os sinais de saturação da rede na capital.

Os dados apontam também para a subnotificação. Enquanto em todo o ano passado foram registradas 643 mortes por insuficiência respiratória, já são 618 óbitos registrados este ano, de 1º de janeiro a 25 de abril. Se essa média mensal se mantivesse, seriam registrados 1.854 óbitos até o fim deste ano, 189% acima de 2019.

Já nos registros de óbitos por pneumonia, foram 516 mortes até 23 de abril, o que já se aproxima dos 643 óbitos registrados nos 12 meses do ano passado. Os dados são do Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), que computa o número de registros de óbitos em cartórios do país.

“Só temos notificações dos casos graves, ou suspeita de Covid-19 ou caso confirmado, que são apenas os casos que chegam às UPAs [Unidades de Pronto Atendimento] ou aos hospitais. Na porta da UPA ou hospital, mesmo com todos os sintomas, pacientes não são nem atendidos. E aí é uma limitação tamanha no sistema de notificação que nem os casos graves a gente está computando”, avalia a epidemiologista Naiza Sá. “Nem a totalidade dos casos graves suspeitos está no levantamento, o que é muito grave. Uma coisa é não ter testes, mas outra é não ter dados sequer de casos suspeitos.”

Profissionais de saúde são quase a metade dos casos confirmados

Do lado de dentro do Hospital de Campanha, o Hangar, a situação é “exaustiva e assustadora”, resumiu o médico que chamaremos de Romualdo, para proteger a identidade do profissional. “A gente já entra no plantão sabendo que vários pacientes devem morrer nas próximas horas”, contou.

“Muitos médicos são grupos de risco, estão afastados da linha de frente. Muitos profissionais também estão afastados por motivos de saúde, com sintomas de Covid-19”, lamentou. “E, além disso, tem o receio de o pessoal vir a adoecer, se contaminar em ambiente de trabalho e levar pra casa”, disse, ecoando um receio unânime entre os profissionais de saúde.

A debandada das escalas de serviço por causa da doença atingiu níveis alarmantes: 42% dos doentes de Covid-19 nos registros oficiais são profissionais da saúde, segundo o Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa). “As condições de trabalho dos médicos não são boas, a começar pela questão dos equipamentos de proteção individual, por exemplo”, diz o diretor de imprensa do Sindmepa, Wilson Machado, repetindo o relato de um cenário que ocorre em todo o Brasil.

“Esse material vai chegando com muita dificuldade para profissionais de saúde. E, quando chega, não está na quantidade suficiente e na especificidade certa.” Com isso, segundo o diretor do sindicato, “as coisas ficam cada vez mais graves, porque diminui muito a quantidade de médicos por afastamento de questão de saúde”.

Os afastamentos agravam a má distribuição de médicos, uma vez que o Pará tem o segundo pior índice de médicos em relação à população no país, ficando à frente apenas do Maranhão. Segundo a Demografia Médica no Brasil, organizada pelo Conselho Federal de Medicina em 2018, a razão de médicos pela população paraense é de 0,97, enquanto a mais elevada é a do Distrito Federal, com 4,35. No comparativo regional, o Norte também fica na última posição, com índice de 1,16.

Somam-se a isso, na avaliação do Sindmepa, os vínculos empregatícios precários entre médicos e instituições públicas e privadas. “Não existe vínculo pela CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] ou por contrato formal que preveja uma segurança mínima ao profissional”, diz Machado.

“Aquele médico que está ali, trabalhando, está muito mais sujeito à contaminação e ao risco de morrer.” Esses profissionais ganham por produtividade, o que significa que, “se ele se afasta e deixa de produzir, ele deixa de ter renda, não tem segurança”, completa o diretor. “E, se ele morrer, não deixa absolutamente nada para garantir o futuro de sua família.”

“Não tem atendimento”

A cabeleireira Susiane Brito, de 25 anos, peregrinou com o sogro de 50, que é diabético, procurando atendimento em Belém. Na UPA do bairro da Terra Firme, de portas fechadas, ainda na segunda-feira, dia 20, um segurança informou: “Não tem atendimento”.

A UPA estava lotada. “Ele estava com todos os sintomas. Até vômito ele teve. Ficava mal, depois passava. Aí levamos à UPA, mas só conseguimos atendimento na Policlínica”, contou Susiane.

De lá, ele foi transferido para o Hangar. Na tarde da quinta-feira, ela também estava junto ao grupo de familiares no aguardo de boas notícias. “Não estão falando nada. Passamos 12 horas sem informação. A única informação veio de uma assistente social, que disse que ele estava bem.”

Para a epidemiologista Naiza Sá, é exatamente o baixo índice de cobertura em atenção básica que agrava o colapso da rede em Belém. “A atenção primária à saúde já estava operando no limite porque a cobertura é baixíssima; a taxa de cobertura de dezembro de 2019 não chega a 38% da população”, diz ela.

“Os casos mais leves não estão sendo tratados. E esse cenário tem a ver com o subfinanciamento da saúde, consolidado com a Emenda Constitucional 95, de 2016. Simplesmente a população aumenta, se modifica, mas o investimento para o SUS é o mesmo”, completa.

Apesar do aumento no fluxo de pacientes, há apenas cinco UPAs e outras duas unidades de pronto-socorro, uma realidade comum às demais capitais do Norte. A região tem a menor distribuição de unidades de pronto atendimento na rede pública em comparação com o restante do país e até mesmo com a região Centro-Oeste, que tem menos habitantes e extensão territorial muito inferior.

A região possui 77 unidades para cerca de 18 milhões de habitantes, enquanto o Centro-Oeste dispõe de 100 unidades para aproximadamente 16 milhões de pessoas.

Na sequência, está o Nordeste, com 217 estabelecimentos de pronto atendimento, o Sul, com 252, e o Sudeste, com 582, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

Sensação de impotência

“Todo dia o noticiário diz que o sistema da região metropolitana de Belém está quase em colapso. É isso mesmo na linha de frente.” A avaliação é de um médico cuja identidade será resguardada, que atua em uma unidade básica de saúde pelo programa Mais Médicos, além de prestar plantões em UPAs de Belém e municípios metropolitanos. “A sensação é de impotência total”, diz ele. “As UPAs não têm EPI, falta material de assistência, como fornecimento de oxigênio.”

Entre os dias 15 e 16 deste mês, ocorreu um ponto de inflexão na rede de atendimento. E o gargalo está situado justamente na atenção básica, ele confirma.

“Os pacientes com suspeitas clínicas, com sintomas sugestivos, precisariam ser triados. Aqueles com sintomas leves podem ficar em casa; moderados ou potencialmente graves precisam de atendimento. Essa triagem seria feita na Unidade Básica de Saúde e, em último caso, na UPA. Mas a nossa atenção básica é péssima. A gente não consegue fazer a triagem”, avalia o profissional.

Isolamento social

Em live transmitida na noite de quinta-feira, dia 23, o governador Helder Barbalho disse que o índice de isolamento do estado estava em 50,9%, o que colocava o Pará em sétimo lugar no ranking nacional. Mas, assim como em outras cidades brasileiras, zonas de comércio popular e periferias da cidade ainda têm grande circulação de pessoas.

Um comportamento que, em grande medida, tem raízes no índice de informalidade, que no Brasil chega a 41,1%, cerca de 38,4 milhões de trabalhadores, mas que no Pará alcança 62,4% deles, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua).

Na informalidade, não há segurança contratual, tampouco acesso a direitos como licenças saúde ou seguro desemprego. Em bairros pobres como o Guamá e no mercado do Ver-o-Peso, a circulação é intensa.

“A questão do isolamento social no estado, a gente não teve muita adesão. E a gente percebe que a adesão é maior na classe média. A população com menor renda não tem como, precisa estar trabalhando, não tem segurança financeira”, observa a epidemiologista Naiza Sá, elencando outros índices, como o atendimento total de esgoto, que em Belém é de apenas 13,56%, semelhante ao de Manaus (AM), 12,43%, e Macapá (AP), 11,13%.

“Na capital só 70% têm acesso a água encanada. É um grande complicador. A principal forma de contenção é o isolamento social e a higienização. Com saneamento baixo, esses casos explodem.”

Apenas uma assistente social faz informes sobre as condições de saúde dos pacientes no Hangar, informam os familiares. “Ela vai de um por um, paciente por paciente, pra saber como ele está. Ontem [quarta-feira, 22], ela entrou às 10 horas e só voltou 7 da noite pra falar com os parentes”, lamenta a cabeleireira Maria Lucicleia Serra, de 48 anos.

Ela aguardava notícias de sua mãe, de 81 anos, que está com sintomas há uma semana. “As pessoas aqui não sabem o que está sendo feito, quais os exames, quais os remédios. Só sabem quando o corpo vai para o IML [Instituto Médico Legal].” A irmã de Lucicleia também está com sintomas leves e acompanha a evolução do quadro em casa.

“O nosso questionamento é o mesmo: há chamada para médicos e enfermeiros, mas e os demais profissionais da saúde?”, indaga a assistente social Luiza Helena, do Conselho Regional de Serviço Social (Cress) do Pará.

“Pelo número de pacientes, há poucos profissionais do serviço social.” Segundo ela, são assistentes sociais que orientam familiares quanto aos procedimentos de prevenção, como lidar com os familiares, e, junto com psicólogos, prestam apoio emocional a pacientes e a outros profissionais da saúde, como auxiliares de limpeza e motoristas de ambulâncias, que também estão superexpostos ao coronavírus.

“Os fluxos e protocolos de até então agora estão defasados, precisamos humanizar o atendimento. É uma forma de minimizar o sofrimento desse momento”, diz Luiza.

Com base nos boletins epidemiológicos, pesquisadores da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) publicaram artigo no qual estimam que o pico da epidemia de Covid-19 no Pará, com número máximo de infectados por dia, será por volta de 6 de maio.

Entre as últimas medidas, além de colocar em funcionamento outros três hospitais de campanha no interior do estado e habilitar leitos de UTI nos hospitais já existentes, a Sespa informou que convocaria 86 médicos cubanos residentes no Pará para trabalharem durante a epidemia. Com o fim do Mais Médicos, para que pudessem atuar no Brasil, o governo federal proibiu que retornassem a seu país.

O governador anunciou, ainda, que uma parte desses profissionais poderá ser cedida à rede municipal, sem custo, caso a prefeitura de Belém tenha interesse. Perguntamos à Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) se a oferta seria acolhida e pedimos dados sobre a habilitação de novos leitos, mas não recebemos resposta.

No Índice de Transparência sobre a Covid-19, estabelecido pela ONG Open Knowledge, o estado do Pará aparece entre as últimas posições do ranking nacional com “baixo nível” de transparência. Nossa reportagem solicitou ao governo do Pará informações sobre equipamentos adquiridos e dados do combate à Covid-19.

Perguntamos também qual o plano de contingência para a epidemia, uma vez que o sistema colapsou pelo menos duas semanas antes do pico. Não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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