(SERGIO LIMA/AFP/Getty Images)
Alessandra Azevedo
Publicado em 27 de abril de 2021 às 06h00.
Última atualização em 30 de abril de 2021 às 07h29.
Esta terça-feira, 27, pode ser um momento de inflexão para o governo Bolsonaro — e para o país. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigará a atuação do governo federal no combate à pandemia de covid-19 começa a atuar, passados 18 dias desde que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou a instalação do colegiado.
As urnas já estão prontas, em locais estratégicos do Senado, para receber os votos para presidente e vice-presidente do colegiado — há uma no corredor da sala de comissões e outra na garagem, para evitar aglomerações. A partir das 10h, os 11 senadores titulares e possivelmente também os sete suplentes estarão a postos para o início da primeira reunião.
Pelos acordos firmados entre os integrantes da CPI, quem assumirá a cadeira da presidência deve ser Omar Aziz (PSD-AM), embora o governista Eduardo Girão (Podemos-CE) também concorra à vaga. O presidente será responsável por coordenar as reuniões, tarefa que começa assim que for oficialmente eleito, nesta terça.
A primeira missão do presidente é designar o relator. Ele terá como uma das principais atribuições elaborar o parecer final, que pode apontar possíveis crimes cometidos pelos investigados. O nome definido por acordo é o de Renan Calheiros (MDB-AL), crítico do governo Bolsonaro.
Mas, nesta segunda-feira, 26, a Justiça Federal do Distrito Federal concedeu liminar para impedir que o emedebista assuma a relatoria. Agora, há algumas possibilidades: que a decisão seja derrubada pelo TRF-1, que os senadores não obedeçam à liminar ou que eles acabem chegando a outro nome para substituir Renan.
Independentemente de quem ficar com a relatoria, a CPI da Covid-19 tem pela frente pelo menos 90 dias de depoimentos, investigações e embates entre governistas, independentes e opositores. A movimentação preocupa o governo, pelo inevitável desgaste, pela chance de perder apoio e pelo medo do resultado das investigações.
Veja os cinco pontos essenciais para prestar atenção durante os trabalhos da CPI:
Eles são minoria, apenas quatro dos 11 titulares, mas têm potencial de fazer barulho e mudar os rumos da CPI, caso não sejam engolidos pelos acontecimentos. Os senadores alinhados ao governo começaram a se movimentar antes mesmo da instalação do colegiado. Foram eles que pediram a inclusão de governadores e prefeitos nas investigações, assim que a CPI foi anunciada.
A tentativa de dissolver o foco deu parcialmente certo. O senador Eduardo Girão conseguiu assinaturas suficientes para que fossem incluídos nas investigações os repasses a estados e municípios, embora não entrem no escopo da CPI apurações diretas sobre a atuação dos gestores locais.
Girão é um dos poucos governistas no colegiado. Além dele, Ciro Nogueira (PP-PI), Jorginho Mello (PL-SC) e Marcos Rogério (DEM-RO) devem defender as posições do Planalto. Pelo menos de início, os trabalhos da CPI devem vir acompanhados de tentativas de contenção de danos por parte desse grupo.
A atuação dos governistas deve envolver requerimentos, iniciativas para postergar as discussões ao máximo e uso de recursos regimentais para questionar pedidos de convocação de autoridades e eventuais quebras de sigilo. Mesmo que nenhum requerimento da base aliada seja aprovado, a movimentação pode interferir no cronograma e atrasar as discussões — e dificultar as atividades é, por si só, um dos objetivos do grupo.
Na definição do plano de trabalho, esses senadores vão lutar para setorizar as investigações e, assim, tentar controlar eventuais sub-relatorias, já que a principal deve ficar com Renan Calheiros ou outro nome não-governista. O mais provável é que os senadores da base aliada continuem focados em atribuir a governadores e prefeitos a responsabilidade por eventuais erros cometidos durante a pandemia.
O foco será nos recursos transferidos e na transparência em relação às verbas que a União destinou a estados e municípios, afirma o cientista político Lucas de Aragão, da Arko Advice. “Será a principal narrativa desse grupo, que tentará criar constrangimento aos entes que receberam recursos e que, por algum motivo, não têm um bom acompanhamento de como gastaram”, diz.
Bom para os opositores, ruim para o governo: eis a avaliação predominante do que significa ter Renan Calheiros na relatoria da comissão, caso ele seja mantido. Se cair a liminar que o impediu de assumir a relatoria, a expectativa é de que ele seja ainda menos benevolente com o governo. Se for mantida, o substituto também deve ser do MDB, pela regra da proporcionalidade.
O objetivo final do relator é elaborar um parecer com a conclusão das investigações, no qual ele pode recomendar ações como indiciamento de integrantes do governo por falhas na gestão da pandemia. Com a configuração da comissão, ninguém espera um parecer que agrade o presidente.
Antes de elaborar o documento, o relator terá outras atribuições importantes, que já são motivo de preocupação no Palácio do Planalto. Entre elas, a definição do plano de trabalho. Como dividir as investigações e quem será ouvido primeiro são algumas das definições do cronograma montado por ele, com base em requerimentos e votações dos outros dez titulares.
Pelo que tem sido conversado com os senadores, o plano de trabalho pode seguir dois caminhos diferentes: iniciar a apuração com base em uma espécie de “linha do tempo”, a partir do início da pandemia, ou começar pelas ações atuais do governo. As principais lideranças são adeptas da primeira opção, mas há divergências.
“Defendo que comece pela gestão atual. Há previsão de que em agosto tenhamos algo em torno de 600 mil mortes, o que é muito preocupante. O ideal é começar a ver o que tem sido feito agora”, diz Humberto Costa (PT-PE). Já para Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente no colegiado e coautor da ação que levou o STF a determinar a abertura da CPI, o certo é fazer uma reconstituição passo a passo.
Na última quinta-feira, 22, Renan afirmou que “inevitavelmente” deverá começar pela investigação da aquisição de vacinas, “se é verdade ou se não é verdade que o governo negligenciou”. Em entrevista à GloboNews, ele afirmou que a “questão da cloroquina” também será tratada. Resta saber se eventual substituto também seguirá essa linha.
Definido o plano de trabalho, as atenções serão direcionadas aos depoimentos esperados na CPI. Algumas presenças são consideradas inevitáveis, como dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello. O atual ministro, Marcelo Queiroga, também está na lista.
Um dos depoimentos que mais geram expectativa é o de Pazuello, recentemente atacado pelo ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten, que, em entrevista à Veja, colocou a escassez de vacinas na conta do ex-ministro. A declaração pode ter deixado Pazuello irritado, apesar dos recentes afagos de Bolsonaro.
Mandetta, político e com possíveis aspirações presidenciais, deve usar a atenção em benefício próprio e, a julgar pelo comportamento desde que saiu do ministério, em abril de 2020, não deve ter problemas em “queimar” Bolsonaro. “A expectativa é que ele use a oportunidade como palanque, já que será candidato a algum cargo público em 2022”, acredita o cientista político André Pereira César, da Hold Assessoria Legislativa.
Teich, que ficou menos de um mês à frente da pasta, também não deve ter muito de positivo a dizer. Ele foi demitido em meio a discordâncias com Bolsonaro a respeito de medidas para combate à covid-19. A CPI também deve contar com depoimentos de técnicos do Ministério da Saúde que trabalhavam nas gestões dos ex-ministros, além de especialistas em saúde pública.
Também são esperados requerimentos para que o ministro da Economia, Paulo Guedes, compareça à CPI. Com o chefe da equipe econômica, devem ser apurados assuntos como a demora no pagamento e na renovação do auxílio emergencial, a efetividade de programas de ajuda a empresas e os repasses feitos a estados e municípios.
Outro nome que será ouvido é o do ex-chanceler Ernesto Araújo. Os senadores querem analisar se as barreiras diplomáticas entre o Brasil e outros países, como China e Estados Unidos, podem ter atrapalhado a aquisição de vacinas. O ex-ministro das Relações Exteriores já se antecipou, nas redes sociais, e disse que a atuação à frente do Itamaraty "não foi empecilho para nada".
Os senadores também querem dar espaço para representantes de laboratórios que fornecem vacinas contra a covid-19. O objetivo, nesse caso, é investigar se o governo abriu mão de negociações pelos imunizantes sem justificativa plausível, o que teria contribuído para o atual atraso no cronograma de vacinação.
Além das convocações e convites, há documentos que certamente serão levantados na CPI, como um ofício do Ministério da Saúde que orienta o uso da cloroquina para tratar a covid-19. Senadores pretendem investigar a participação da pasta no incentivo ao uso de remédios sem eficácia comprovada, além de falas de Bolsonaro, que recomendou o uso em várias ocasiões.
A Casa Civil da Presidência da República já se prepara para as investigações e elaborou uma lista com 23 acusações contra o governo no combate à pandemia, se antecipando aos questionamentos de senadores. A lista inclui desde o “negacionismo” do governo no combate à pandemia até problemas como a demora para pagamento do auxílio emergencial e a falta de insumos para intubação.
Também há dúvidas sobre que governadores serão abordados pela CPI. Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que deve ser eleito vice-presidente da comissão, acredita que será “inevitável” ouvir o governo do Amazonas sobre a circunstância de agravamento da pandemia no estado. Em entrevista à EXAME, ele afirmou que é preciso ter direcionamento, porque há muitas provocações para que a CPI “saia do foco”.
Enquanto os senadores governistas tentarão limpar a barra de Bolsonaro na CPI, o presidente deve se apegar ainda mais à parcela do eleitorado que ainda o apoia, acreditam especialistas, que esperam reações desde “cortinas de fumaça” a ataques na internet. “É possível que ele use as redes sociais para desqualificar a atuação da comissão ou que crie fatos paralelos”, acredita César.
Outra reação prevista por ele é o ataque aos governadores, principalmente Renan Filho (MDB), de Alagoas, filho de Renan Calheiros, e Helder Barbalho (MDB), do Pará, filho de Jader Barbalho (MDB-PA), suplente na CPI. “Bolsonaro pode argumentar que eles são parciais nas investigações", diz o especialista da Hold. Eventos no entorno do Planalto podem ser respostas à CPI, como eventuais operações da Polícia Federal contra governadores.
Para o analista político Creomar de Souza, da Dharma Consultoria, Bolsonaro deve se preocupar com os rumos da comissão, mas dificilmente abandonará a postura de embate. “Caso a CPI evolua para um cenário de muito desgaste ao presidente, ele vai partir para o bom e velho confronto. Pode fazer evocações a militares, por exemplo. E deve investir em uma agenda positiva, como inaugurar obras, enquanto acena para o núcleo mais duro”, acredita.
A dúvida é se os senadores alinhados ao governo continuarão mobilizados com o desenrolar das investigações. Caso Bolsonaro sofra muitas derrotas, pode ser que eles pulem fora do barco. “Os parlamentares que começarem a perceber que o governo se enrola e se enfraquece podem desistir de apostar nessa base. Principalmente o Centrão”, avalia a cientista política Carolina Botelho, pesquisadora do SCNLab/Mackenzie e do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.
Passados 90 dias de investigações, no final de julho, a comissão decidirá se continua os trabalhos por mais um tempo ou se encerra as atividades. Mesmo que as apurações não tenham resultados expressivos e concretos — o que seria a melhor das hipóteses para o Planalto —, é muito provável que haja desgaste da base governista, dizem especialistas.
É praticamente inevitável que a CPI tenha implicações nas eleições de 2022. “Com certeza terá algum tipo de influência no pleito do ano que vem. Não só porque Bolsonaro pode sair enfraquecido, mas porque outros possíveis candidatos vão usar documentos, falas e apurações da CPI nas campanhas. É o caso de Mandetta e de candidatos de esquerda”, avalia César.
O relatório final da CPI pode servir de base para que o Ministério Público tome providências para que, se for o caso, os que praticaram crimes sejam punidos. Também pode gerar material que embase o encaminhamento de pedido de impeachment de forma mais contundente do que os que já tramitam na Câmara.
Mesmo que nada disso aconteça, Bolsonaro deve sair perdendo. Não só do ponto de vista eleitoral, mas pelo “arsenal” que será criado contra ele. “Mesmo que o governo saia de certa forma sem muitos prejuízos imediatos, haverá material consolidado, documentado para qualquer outro tipo de ação para além da CPI”, pontua Carolina Botelho.
Além disso, de imediato, a CPI gera preocupação no mercado financeiro, por ser mais um fator de instabilidade e por sinalizar que o Congresso estará focado nas investigações, deixando de lado pautas econômicas. É também mais um sinal de complicação para o governo, que já tem que lidar com perspectiva de indicadores econômicos ruins e com o agravamento da pandemia.