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Censo da Fiocruz aponta indústrias de IFA no mesmo patamar de 2013, mas com potencial de expansão

Insumo essencial para fabricação de medicamentos é produzido hoje por 40 empresas. A boa notícia é que o Brasil pode expandir a capacidade ociosa e apresenta vantagem competitiva no IFA por extração animal 

A Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi) avalia que o Brasil precisa expandir a fabricação de IFA para, no mínimo, 20% (Leandro Fonseca/Exame)

A Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi) avalia que o Brasil precisa expandir a fabricação de IFA para, no mínimo, 20% (Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 30 de março de 2025 às 08h07.

Última atualização em 31 de março de 2025 às 13h38.

A falta de um medicamento nas farmácias pode parecer um problema pontual, mas muitas vezes a raiz da questão está na indisponibilidade do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), essencial para sua fabricação. Sem ele, a indústria farmacêutica não consegue produzir comprimidos, cápsulas ou injetáveis, como alerta Jorge Costa, assessor técnico da vice-presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

De acordo com a entidade, garantir a produção local desses insumos não é apenas uma questão econômica, mas também estratégica para o país, reduzindo o risco de desabastecimento e fortalecendo a soberania nacional na área da saúde.

Costa é um dos responsáveis pelo Censo Nacional de IFAs, que acaba de ser concluído no Brasil. O estudo revela que, atualmente, 40 indústrias farmoquímicas produzem esses insumos considerados essenciais para a fabricação de medicamentos. Em 2013, esse número era de 36, representando um aumento modesto em 12 anos.

O dado, contudo, preocupa especialistas. Hoje, há cerca de 2.000 IFAs registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) circulando em território nacional, mas apenas 100 deles são produzidos internamente. "Isso significa que fabricamos apenas 5% das necessidades do país", explica o assessor da Fiocruz.

A dependência da importação de IFAs expõe o país a riscos de desabastecimento, afetando diretamente a oferta de medicamentos.

"Quando um remédio falta na farmácia, muitas vezes o problema não está na indústria farmacêutica que faz os comprimidos ou injetáveis, mas na ausência do IFA necessário para sua produção", afirma Costa.

A Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi) avalia que o Brasil precisa expandir a fabricação de IFA para, no mínimo, 20%. O percentual é visto como uma questão estratégica para a soberania do setor farmacêutico brasileiro caso os principais fornecedores, China e Índia, fechem a exportação.

"Como já aconteceu. A Índia, nos primeiros meses da pandemia de covid-19, fechou e não vendeu nada para gente", afirma Norberto Honorato Prestes Junior, presidente da Abiquifi.

Prestes compara a situação brasileira com a dos Estados Unidos, que também importam 70% dos insumos essenciais produzidos por China e Índia. A diferença entre os dois casos, segundo ele, é que numa paralisação de fornecimento os estadunidenses têm condições de reagir — e o governo assume o risco com incentivos às empresas, independentemente do custo.

"A França fez isso, diversos países estão reagindo e falando às indústrias: 'montem suas bases'. Porque, se fechar de novo [como na pandemia], eles conseguem agir, a população fica viva, o que é o básico. Precisamos no mínimo avançar nesse sentido. Nós temos pé no chão de que não seremos independente e tal. Na década de 1990, podíamos produzir 50% dos IFAs. Mas não tem uma fábrica de antibiótico hoje e nós tínhamos seis", diz o presidente da Abiquifi.

Brasil tem vantagem competitiva industrial

Um ponto positivo identificado pelo censo da Fiocruz é que muitas indústrias do setor operam com capacidade ociosa, o que permitiria um rápido aumento na produção com investimentos relativamente baixos.

Das 40 indústrias farmoquímicas que produzem IFAs no Brasil, 80% delas, segundo o estudo, possuem estrutura de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Em empresas públicas, como o Instituto Butantan e na Fiocruz, que não têm fins lucrativos, o aporte em inovação pode chegar a 50% do faturamento bruto. E nas companhias privadas, o investimento pode chegar a 16%.

"Isso é algo bastante positivo e percebemos um aumento na capacidade produtiva e na produção real em toneladas", afirma o assessor técnico da Fiocruz.

Duas farmacêuticas possuem divisão farmoquímica, o Laboratório Cristália e a Libbs. O censo também identificou que praticamente todas farmoquímicas são de capital 100% nacional, como Globe, Nortec e Blanver. E apenas as instituições públicas BioManguinhos (Fiocruz), Instituto Butantan, Fundação Ezequiel Dias, Instituto Vital Brazil e Tecpar atua no setor de biotecnologia.

"O Brasil tem uma grande oportunidade de expansão. Com políticas de incentivo adequadas, podemos dobrar nossa produção nacional de IFAs em pouco tempo", afirma Prestes. Costa completa que o perfil das farmoquímicas mostra que a política pública também fortalece o "capital nacional, aqueles que investem no Brasil".

Além da capacidade de expansão, o país tem uma vantagem competitiva específica: a produção de IFAs por extração animal, especialmente por meio de bovinos e suínos. O assessor da Fiocruz destaca que o Brasil tem uma vantagem competitiva nesse setor porque possui um dos maiores rebanhos de gado e suínos do mundo.

Segundo o IBGE, em 2023, só de cabeças de bois e vacas, o Brasil somava 238.626.442. Isso permite ao país produzir os IFAs por extração animal em larga escala, tanto para o mercado interno quanto para exportação.

Esses insumos são essenciais na produção de heparina, usada como anticoagulante em medicamentos; sulfato de condroitina, utilizado contra problemas articulares, como osteoartrite; e peptonas – utilizadas como meio de cultura em processos de fermentação e cultivo de tecidos, mas que não são medicamentos por si só.

Fiocruz: técnico faz envase do primeiro lote de IFA da vacina covid-19 em 2022 (Foto/Reprodução)

Apesar da vantagem do Brasil na produção pecuária, durante o censo, Costa documentou que muitas empresas se queixaram da "concorrência desleal" na área. Indústrias farmacêuticas brasileiras que produzem medicamentos com heparina preferem importar o insumo da China, em vez de comprá-lo das indústrias nacionais.

Isso enfraquece os produtores locais e dificulta o crescimento da cadeia produtiva no Brasil. "Muitas empresas estrangeiras compram os nossos insumos, as vísceras bovinas e suínas e vai para fora com um preço muito baixo", diz Costa, da Fiocruz.

O responsável pelo estudo da Fiocruz diz que essas empresas importam esse insumo com uma Nomenclatura Comum Mercosul (NCM) que não corresponde de fato ao produto importado para pagar menos imposto.

"É uma fraude que prejudica o produtor nacional, prejudica o país porque não arrecada os impostos que deveriam arrecadar", afirma. As indústrias farmaquímicas nacionais apontaram no censo a necessidade de alertar o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) para que tome providências.

De acordo com Costa, o próximo passo do Censo Nacional de IFAs é buscar pelo MDIC e o Ministério da Saúde para apresentar o raio-x do setor e definir os insumos estratégicos para produção nacional. O objetivo é elaborar políticas públicas para fomentar essa produção.

Um exemplo emblemático de medicamento que se encaixa neste perfil é a enzima L-asparaginase, indicada para tratar leucemia infantil e que não tem produção no Brasil.

"No passado tivemos um desabastecimento grave do produto e o Inca chegou a criar um grupo multidisciplinar para tratar desta emergência. Lembro-me de que em uma destas reuniões um médico fez um apelo emocionado alertando sobre a perda de vários pacientes pediátricos em função da indisponibilidade do remédio. Crianças que poderiam estar vivas e evoluíram para óbito por falta do ingrediente farmacêutico ativo", diz o assessor técnico da Fiocruz.

O estudo também reforça a necessidade de uma política industrial voltada para o fortalecimento da produção nacional de IFAs e defende a ampliação de Parcerias Público-Privadas, como o Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL) e Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP).

Segundo dados abertos nesta semana pela Abiquifi, as parcerias bateram recorde em 2024. Cerca de 350 projetos foram apresentados, quase três vezes mais do que a última vez que abriu o edital, há quase 10 anos.

Jorge Costa conclui que para o país se tornar um ator relevante no setor farmacêutico em 15 a 20 anos, é essencial que essa área seja tratada como estratégica por uma política industrial a longo prazo, independentemente de mudanças políticas.

"A Irlanda era um país absolutamente agrícola e o governo irlandês entendeu que a área farmacêutica era estratégica para dar destaque à Irlanda, e começaram um trabalho de fortalecimento, formando engenheiros etc. Hoje a Irlanda briga com os principais centros de P&D de indústria farmacêutica. Mas isso não se faz em 4 ou 8 anos. E essa curva senoidal que a gente observa no Brasil é que atrapalha bastante. Se nós tivéssemos ações no governo federal que continuassem a entender essas áreas como estratégica, independentemente da cor da bandeira partidária, nós teríamos uma chance de, daqui a 15, 20 anos, ser um ator de destaque nesse cenário", finaliza o assessor técnico da Fiocruz.

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