Bloco de Carnaval de rua no Rio de Janeiro (Ricardo Moraes/Reuters)
Agência Brasil
Publicado em 5 de fevereiro de 2017 às 12h18.
Rio de Janeiro -- Blocos do carnaval não oficial do Rio de Janeiro, formados por músicos amadores, que se reúnem sem horário e trajeto pré-definidos, pretendem deixar de fora da folia, este ano, marchinhas incômodas. Influenciados pela crescente mobilização de mulheres, que tocam ou desfilam nesses blocos, principalmente de mulheres negras, o repertório passou a ser questionado, com a intenção de evitar canções que possam sugerir alguma forma de preconceito ou violência.
"Se a gente prestar atenção, [no trecho de] O Teu Cabelo Não Nega: 'Porque és mulata na cor/ Como a cor não pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor', está claro o racismo. Cor não é doença, não é contagiosa", criticou a artista visual e percussionista que acompanha o tema, Amora*. Ela toca há mais de dois anos em blocos e fanfarras do circuito marginal e tem participado de protestos de músicos, parando de tocar, quando alguém ameaça puxar as canções.
A discussão vem desde o ano passado, quando musicistas alertaram para letras que poderiam ser consideras racistas, misóginas e transfóbicas (que discriminam pessoas trans), reflexo da mobilização de defensores de direitos humanos e de movimentos sociais. Entre elas, o funk Baile de Favela, do MC João, e tradicionais marchinhas de carnaval, como O Teu Cabelo Não Nega, de Lamartine Babo, citada por Amora, ou Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly. Este ano, na abertura do carnaval não oficial, em janeiro, musicistas se recusaram a tocar Mulata Bossa Nova, de Kelly, alegando que a palavra mulata é pejorativa, por se referir à mula, etimologicamente. Na ocasião, elas foram até expulsas da área dos músicos.
"O que está em questão, mais do que a etimologia das palavras, é o papel da mulher no carnaval", disse Ju Storino, percussionista e integrante do Coletivo Feminista Todas por Todas. "Onde está a voz da mulher no carnaval? Quando pedimos para que nos ouçam, para que não toquem, muitos fazem ouvido de mercador ou reproduzem mais violência contra quem questiona. Como vamos fazer carnaval sem parceria, sem parceria com o puxador?", perguntou. Ela lembrou que, por serem preconceituosas, composições já foram levadas por movimentos sociais à Justiça. "A discussão não é nova. Quem não vê problema é quem nunca foi vítima".
Um dos blocos que excluíram canções depois da polêmica foi o Vem cá, minha Flor. "Percebemos que algumas são racistas, machistas, preconceituosos, acabavam constrangendo ou agredindo pessoas, então, pelo sim e pelo não, a gente preferiu banir", explicou um dos fundadores do bloco, que reúne entre 60 e 80 ritmistas, Edu Machado. Segundo ele, foram decisões difíceis e nem sempre unânimes. "Cortamos Baile de Favela, que era a música do momento, em 2016, mas que tem uma questão agressiva. Mas outras que eu continuaria tocando, como Cabeleira do Zezé, que muitos gays não veem problema, também saem". O trecho controverso é o verso imperativo "corta o cabelo dele", que pode ser interpretado como violência a travestis.
Para o professor universitário e percussionista André Videira de Figueiredo, que toca em pelo menos cinco blocos, como o Carimbloco, de música paraense, e a Fanfarra Tupiniquim Amostrado, a horizontalidade do carnaval não oficial, além dos protestos das musicistas, vem estimulando reflexões. Para resolver, ele sugere que os blocos escutem os grupos incomodados com as letras. "Não vou discutir se [a música] Mulata Bossa Nova é uma homenagem ou discriminação. A ofensa é um sentimento, só pode dizer que algo é ofensivo quem se sentiu ofendido, não é o ofensor que tem que ser convencido, ele apenas tem que ser informado", afirmou o antropólogo.
Autor de marchinhas controversas, o compositor João Roberto Kelly defende suas composições. Ele diz que nunca teve a intenção de ofender nenhum grupo e que suas canções foram feitas para incentivar a brincadeira. "Estamos falando de músicas que são sucesso há 40, 50 anos. O povo gosta de cantar, de dançar, de ouvir". Ele lembra canções como Maria Sapatão que, quando lançadas, desmistificavam preconceitos. E cantou: "O sapatão está na moda/O mundo apladiu/ É um barato, é um sucesso/ Dentro e fora do Brasil. Isso é um elogio", disse.
Entre os blocos do circuito oficial, a polêmica não teve espaço. Com patrocínio de marcas de cerveja, músicos contratados e carros de som arrastando milhares de foliões, a Sebastiana, associação que reúne 11 blocos e a Folia Carioca, que responde por mais de 20 blocos, declararam à imprensa que consideram antigas marchinhas parte da tradição do carnaval.
"Carnaval é momento maior da alegria e essas músicas foram feitas lá atrás, em uma época que não tinha o politicamente correto", declarou Pedro Ernesto, presidente de um dos mais tradicionais blocos oficiais, o Bola Preta, que está às vésperas de fazer o 99º desfile. Ele disse que nunca soube de alguém que tenha ficado ofendido com uma marchinha de carnaval. "Se você tirar O teu cabelo não nega e a Cabeleira do Zezé, você está matando a festa", afirmou.
A percussionista de blocos não oficiais, Amora*, discorda de Pedro Ernesto. Ela acredita que o momento é de mudança. "Muita gente nunca prestou atenção em letras, nem nos clichês de fantasias, como a "nega maluca". Porém, quando alertadas, há empatia. "Se é ofensivo, a gente não toca mais. E assim, o músico do lado, o outro e o outro", acrescentou.
*Para evitar constrangimento nos blocos em que toca, a entrevistada pediu para não ser identificada.