Câmara dos Deputados (Zeca Ribeiro/Agência Câmara)
Agência de notícias
Publicado em 15 de junho de 2024 às 10h11.
Sob o comando de Arthur Lira (PP-AL), a Câmara dos Deputados bateu recorde no número de proposições que ganharam regime de urgência, ferramenta que pula etapas no processo legislativo e permite a votação diretamente no plenário da Casa. Levantamento do GLOBO mostra que foram 77 requerimentos votados em 2024, o maior número para o primeiro semestre em 22 anos — apenas dois foram rejeitado. O volume é 48% maior que o do mesmo período de 2023.
O mecanismo tem sido usado por Lira para pressionar o governo e fazer acenos a parlamentares da oposição, tendo em vista a disputa pela sua sucessão, em fevereiro do ano que vem. O atual mandachuva da Câmara tenta eleger um aliado e, para isso, busca apoio tanto do Palácio do Planalto quanto do PL, que têm a maior bancada (leia mais na página 5). Procurado, o deputado não quis se manifestar.
Comissões esvaziadas
Foi o que aconteceu no caso do último requerimento aprovado, na quarta-feira passada, que deu regime de urgência ao projeto que equipara o aborto a homicídio quando realizado após a 22ª semana. O texto é defendido por parlamentares bolsonaristas e teve votação simbólica, em que a posição individual de cada deputado não é registrada. Após a repercussão negativa, o governo se declarou contrário à medida. O Planalto também se beneficia desses requerimentos.
Na prática, a aprovação da urgência de uma proposta esvazia as comissões temáticas, colegiados em que os projetos são debatidos com mais tempo e profundidade, e reduz o tempo de discussão de leis e emendas constitucionais.
O projeto que trata do aborto, por exemplo, foi apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) no dia 17 de maio e não chegou a ser discutido em nenhuma das comissões da Casa. Sem a urgência, a medida teria de ser analisada ao menos pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), “porta de entrada” do processo legislativo, responsável por avaliar se a proposta fere ou não os princípios constitucionais.
O número de urgências aprovadas é reflexo também da quantidade de requerimentos apresentados pelos parlamentares. Mesmo na metade do ano, 2024 tem 173 até agora, número que só não é maior para o período que o de 2020, que teve 291 pedidos em razão da pandemia.
Uma análise dos requerimentos de urgência aprovados neste ano mostra que o Palácio do Planalto e lideranças de esquerda também utilizaram o mecanismo para dar celeridade a proposta de seu interesse. Das 77 propostas analisadas neste ano, 11 foram apresentadas por deputados do PT. Em comparação com 2022, último ano de Jair Bolsonaro, por exemplo, dois pedidos de petistas tinham sido aprovados no primeiro semestre e seis durante todo o ano — quatro deles ganharam aval na transição, já após a vitória eleitoral de Lula.
Líder do governo, José Guimarães costuma ser o responsável por pedir a urgência de projetos prioritários para o governo. Nessa lista, entraram a taxação na compra de produtos importados, a chamada “taxa da blusinha”, e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até 2 salários mínimos.
Já em relação aos temas das propostas com regime diferenciado, há semelhanças. Há dois anos, quando Lira tentava angariar apoio para se reeleger no comando da Câmara, pautas bolsonaristas também ganharam o direito de furar a fila, entre elas a criação do Dia Nacional do Cristão. Naquele ano, os deputados também aprovaram a urgência do Piso da Enfermagem, proposta que virou trunfo eleitoral de Bolsonaro na sua campanha.
As urgências costumam ser acordadas nas reuniões do colegiado de líderes, “sem compromisso com o mérito”, como costumam dizer parlamentares que participam desses encontros. Ou seja, para facilitar acordos, deputados concordam em dar celeridade até mesmo a propostas que, posteriormente, se posicionarão contrariamente quando ele for de fato discutido.
Tanto para governistas quanto deputados de oposição, a sociedade perde quando um projeto vai diretamente para o plenário, sem passar pelas comissões da Casa.
"O instrumento da urgência é relevante, mas acabou banalizado, o que diminui o debate político e reduz a participação do conjunto dos parlamentares nos temas da Casa", afirmou o deputado Danilo Forte (União-CE).
O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) avalia que, ao levar os temas diretamente ao plenário, Lira facilita o que ele chama de “trator” de maiorias eventuais.
"O furor das urgências causa grande prejuízo para o bom processo legislativo. Ao suprimir a análise das comissões temáticas e, em especial, da CCJ, o regime de urgência, que devia ser exceção e não regra, comprime o debate e inibe o contraditório ", disse o parlamentar do PSOL.
Por outro lado, líderes e deputados com influência na Câmara dizem não ver prejuízo no aumento do número de urgências aprovadas e afirmam que essa é uma ferramenta usada para dar mais atenção, celeridade e fluxo às pautas. O deputado Alberto Fraga (PL-DF), presidente da Comissão de Segurança Pública da Casa, defende o mecanismo, embora veja excessos no seu uso:
"Para determinados projetos a urgência é muito importante, mas a quantidade de urgência que nós temos aprovado, isso é uma loucura. Isso mostra que as matérias importantes estão deixando de ser votadas e para preencher a pauta está se usando o requerimento de urgência".
Para a professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), a cientista política Graziella Testa, o abuso do uso da urgência leva a um prejuízo informacional, técnico e de participação popular no Legislativo.
"Isso porque é nas comissões onde há tempo hábil pro trabalho dos técnicos internos ou externos em cima do tema em questão", diz Testa.