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Bolsonaro é inconsequente e isolamento vertical é disparate, diz Serra

Em entrevista à EXAME, ex-ministro da Saúde atribui aos gestores locais "todos os avanços e todas as vidas que não perderemos"

José Serra, senador e ex-ministro da Saúde (Jane de Araújo/Agência Senado)

José Serra, senador e ex-ministro da Saúde (Jane de Araújo/Agência Senado)

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Clara Cerioni

Publicado em 3 de abril de 2020 às 07h30.

Última atualização em 3 de abril de 2020 às 07h30.

O senador José Serra (PSDB-SP), que foi ministro da Saúde entre 1998 e 2002, avalia a postura do presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia do novo coronavírus como "inconsequente" e vê com preocupação as consequências de o país não considerar a gravidade da doença.

"O presidente foi mal assessorado ao interpretar os dados iniciais dessa doença. Isso o levou a subestimar seus efeitos", diz em entrevista à EXAME. O senador falou ainda sobre a falta de conhecimento do presidente sobre a realidade brasileira, que vai "além do prisma elitista e preconceituoso que carrega".

Quando ministro, Serra enfrentou o início do surto de dengue no Brasil. Para ele, a atuação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é técnica e transparente, mas há uma "certa letargia em transformar o diagnóstico e as intenções em ações efetivas".

Na entrevista, o senador analisou ainda as implicações de uma possível perda de controle da pandemia, que já matou cerca de 300 pessoas no Brasil, e apontou as urgências que a situação inédita de emergência pública de saúde necessita.

Apesar do cenário dramática, no entanto, ele é otimista sobre a atuação dos gestores locais e tem a perspectiva de que o coronavírus pode deixar de legado transformador: a importância do Sistema Único de Saúde. A seguir leia os principais trechos da entrevista:

Na posição de ex-ministro da Saúde, como o senhor avalia a atuação do ministro Luiz Henrique Mandetta e do Ministério da Saúde na pandemia?

O Ministro está fazendo o que se espera da pasta. Uma abordagem técnica, transparente e comunicada de forma clara e frequente para toda a população, seguindo orientações da OMS e do Estado da arte da ciência. Tem atuado de forma coordenada com as secretarias de saúde locais e buscado ampla integração, sobretudo das informações epidemiológicas e dos principais gargalos do sistema de saúde, para promover ações efetivas do Ministério.

Ele parece bem consciente do problema e das ações urgentes necessárias. Mas tenho sentido certa letargia em transformar o diagnóstico e as intenções em ações efetivas. Fala-se em testes em massa, mas eles não chegam. Fala-se em reforço orçamentário aos centros de saúde locais, mas eles não chegam. Nesta fase inicial, crítica e aguda do surto, o ministro precisa ganhar musculatura e ter ascensão sobre as demais pastas.

Para colaborar, apresentei e o Senado já aprovou um projeto de reforço orçamentário de R$ 2 bilhões, sem condicionantes, às Santas Casas, que respondem por 50% do número de atendimentos do SUS e serão fundamentais para absorver o volume de situações emergenciais de saúde que teremos neste momento.

Como o senhor vê o bate cabeça entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Mandetta sobre o desencontro nas recomendações de isolamento total da população?

O presidente foi mal assessorado ao interpretar os dados iniciais dessa doença causada pelo novo coronavírus. Isto o levou a subestimar seus efeitos. Em um processo de contágio exponencial como este é natural que o número de casos suba muito mais rapidamente que o número de óbitos, levando a crer que se trata de uma doença branda. Os óbitos vêm apenas depois, mas também em escala exponencial. Se cometermos o equívoco de calcular a taxa de mortalidade usando duas curvas exponenciais deslocadas no tempo, vamos subestimar a doença.

Esta postura fez o presidente criar uma narrativa errada de partida, inconsequente. Mostrou também que desconhece a verdadeira realidade brasileira, muito além do prisma elitista e preconceituoso que carrega dela. Temos bolsões de miséria, fragilidades sanitárias chocantes e um arranjo geográfico e familiar onde os mais carentes habitam espaços minúsculos e onde os donos das moradias são justamente os mais idosos, responsáveis também pelo acompanhamento das crianças, enquanto seus filhos trabalham.

Este desconhecimento o fez também embarcar em ideias ingênuas da possibilidade de um “isolamento vertical” ordeiro no Brasil. Nem os países mais capacitados, com plena competência para realizar testes em massa e com elevado número de respiradores livres, ousam percorrer esta rota, na forma sugerida pelo Presidente, de simplesmente abrir e deixar a cargo de cada núcleo familiar o isolamento de infectados e o afastamento e proteção dos idosos do convívio familiar e social. Um verdadeiro disparate.

Conjuntamente, estas atitudes criaram uma narrativa ruim para o presidente, algo que o colocou em confronto com seus ministros, com a OMS, com o estados das artes da ciência e, ao fim e ao cabo, com a realidade, exponencial, do surto, que teimará em se impor. Felizmente, em seu pronunciamento de terça-feira o presidente aparentou estar percebendo melhor esta realidade. Espero que de forma muito mais construtiva e cooperativa.

Qual o impacto negativo desse desencontro de orientações para a população? Corremos o risco de perdermos o controle da pandemia em um país tão extenso como o Brasil?

Sim, o risco é perdemos o controle e o surto contaminar nossas regiões mais frágeis, com menor disciplina ou mesmo capacidade física e econômica de atender ao disposto nos atos de isolamento social estrito. Mas precisamos enaltecer as ações tempestivas e corretas empreendidas pelos gestores locais por todo o Brasil.

Os agentes da linha de frente estão fazendo um trabalho admirável e incansável de preparação e contenção do surto. Devemos a eles todos os avanços e todas as vidas que não perderemos para esta crise de saúde mundial.

Como o senhor tem avaliado a resposta do Brasil para conter o avanço do coronavírus no que desrespeito à área da saúde, como liberação de leitos, mobilização de respiradores e organização do SUS?

O Ministério da Saúde tem feito um bom trabalho, em articulação com as secretarias estaduais e municipais de Saúde. Acontece que o SUS foi maltratado nos últimos anos, tendo grandes dificuldades para atender as necessidades da população.

Claro que, agora, a situação se agravou bastante e o Ministério da Saúde, ao lado das secretarias estaduais e municipais, está correndo atrás do prejuízo. Espero que esta experiência sirva para convencer os governantes e a sociedade brasileira da importância de ter um sistema de saúde público mais eficiente.

Uma das preocupações dos especialistas em saúde é que o Brasil está subnotificado sobre os reais casos de pacientes infectados pela covid-19. O senhor compartilha dessa preocupação? Como deveria estar sendo implementada essa estratégia de testes em massa? 

Isto está acontecendo no mundo todo. Talvez a exceção seja a Coreia do Sul. Em parte isto se deve à grande velocidade com que a epidemia se espalhou, a ponto de virar uma pandemia. E também devido ao fato de ser um vírus novo — por isso partiu-se do zero para elaborar os testes, cuja demanda mundial explodiu.

Mas acho que agora a oferta está melhorando e que o Brasil vai conseguir, no curto prazo, ampliar a realização de testes em massa. Sempre lembrando da prioridade que deve ser concedida aos profissionais de saúde. Aproveito aqui para prestar a minha homenagem a todos os médicos, enfermeiras e demais profissionais de saúde, ai incluídos também todos que trabalham nos serviços de saúde, desde a recepção, segurança, limpeza, alimentação, etc.

Na condição de senador, o senhor apresentou alguns projetos de lei para minimizar os impactos do novo coronavírus no país. Quais deles são mais urgentes e por quê?

Sim, todos os parlamentares e o Congresso definiram múltiplas ações buscando soluções imediatas. Por ter mais experiência, especialmente na área de Saúde, creio que fui diretamente ao ponto. De todas as ações empreendidas, creio que a mais fundamental foi o poder Legislativo dar carta branca para o Executivo federal empreender os gastos necessários para o suporte econômico do sistema de saúde e da população desassistida.

Isto foi alcançado mediante a aprovação de um Decreto Legislativo pelo Congresso Nacional, que declarou a situação de calamidade e excetuou o governo das amarras orçamentárias ordinárias. Ressalto que apresentei antes um projeto similar que, acredito, tenha auxiliado a apontar o caminho. Também colaborou nesse mesmo sentido a ação cautelar do STF eximindo o executivo do cumprimento das regras fiscais ordinárias em relação a esses gastos extraordinários.

Outra ação legislativa fundamental, que ainda precisamos ver em prática, foi a aprovação da renda mínima e da entrega da merenda escolar diretamente às crianças. Esta ação irá impedir que trabalhadores informais, pessoas carentes e seus filhos passem fome e sejam expostas a um custo indigno ao suportar os sacrifícios que a sociedade se impôs para ganharmos tempo e capacidade para enfrentarmos o surto e até mesmo para evitarmos que ele alcance justamente as populações mais frágeis.

O poder executivo tem hoje amplo respaldo legal e republicano para empreender as ações executivas necessárias. A bola está, como sempre esteve nestes momentos, com o Presidente da República e seu colegiado de ministros, que gozam de amplo apoio, manifesto, declarado, de todos os poderes e instituições democráticas do Brasil.

Cabe agora ao poder Legislativo dar capilaridade às informações e demandas de suas bases na medida em que avaliamos o surto, cobramos e direcionamos ações dos poderes executivos das três esferas de governo e, acessoriamente, seguir amadurecendo ideias e proposições que não criem atritos ou impedimentos à capacidade do Executivo de mobilizar recursos prontamente.

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