Brumadinho: trauma é semelhante ao de guerra, afirma especialista (Cris Faga/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 9 de setembro de 2019 às 12h28.
Última atualização em 9 de setembro de 2019 às 13h17.
Brumadinho — A lama da barragem da Vale que rompeu em Brumadinho continua afetando moradores do município mineiro. Pouco mais de sete meses depois da ruptura da represa de rejeitos de minério de ferro da empresa, ocorrida em 25 de janeiro, números da Secretaria Municipal da Saúde mostram aumento de suicídios e tentativas no município, principalmente entre mulheres.
O quadro reflete a deterioração na saúde mental da população, comprovada por alta expressiva nas prescrições de antidepressivos e ansiolíticos (medicamentos para controlar ansiedade e tensão).
No primeiro semestre de 2019 foram registradas 39 tentativas de suicídio na cidade (11 entre homens e 28 entre mulheres), 9 a mais do que no mesmo período do ano passado - uma alta de 23%. Em relação aos suicídios, o número passou de um, em 2018, para 3 este ano.
"São mulheres que perderam filhos e marido. A sensação de perda para elas é maior para ressignificar a vida", disse o secretário municipal de Saúde de Brumadinho, Junio Araújo Alves. "Essa é uma face do adoecimento mental da população. Estamos trabalhando para evitar um quadro ainda pior."
Os dados da prefeitura mostram que o uso de antidepressivos por pacientes da rede pública de saúde foi, em agosto de 2019, 60% maior que no mesmo período do ano passado. Em relação aos ansiolíticos, o crescimento é ainda mais significativo, de 80%, no período.
Os números são ainda mais dramáticos se feito corte por remédio prescrito. "O uso de risperidona aumentou 143%", relata o secretário. A droga é utilizada no tratamento de psicoses, agindo contra transtornos relacionados a pensamento, emoções, ansiedade, distúrbios de percepção e desconfiança.
Ex-moradora de Córrego do Feijão — a localidade mais afetada pela lama —, Elizângela Gonçalves Maia, de 39 anos, está nos dois registros de alta de medicamentos da prefeitura: após a tragédia, passou a tomar antidepressivo e ansiolítico.
Depois da lama, ela continuou morando no bairro, que é afastado do centro, mas, com o sobrevoo constante de helicópteros na região, sua casa foi tomada por rachaduras e interditada pela Defesa Civil. Hoje, mora na cidade em casa alugada pela Vale.
"Fui diagnosticada com depressão. O que sinto é que estou em um lugar que não é o meu", afirma Elizângela, que perdeu uma prima e amigos na tragédia.
A ex-moradora do Córrego do Feijão continua trabalhando no bairro, como gerente de processamento em uma fazenda não atingida pela lama que produz pestos e antepastos. Elizângela passou a apresentar também pressão alta, mas diz não tomar remédio para a doença.
A agricultora Soraia Campos, de 42 anos, que participa da comissão de atingidos pelo rompimento da barragem, conta que o marido, um filho e uma filha também passaram a tomar ansiolítico.
A agricultora relata que iniciou tratamento com esse tipo de remédio, mas, por conta própria, suspendeu as doses. "Estava ficando prostrada, e não posso parar. Minha briga contra a Vale é grande."
O trauma psicológico sofrido por moradores de Brumadinho tem paralelo com o identificado em populações de países acometidos por guerras, destaca o professor Frederico Garcia, do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "As pessoas veem tanto a sua vida como seu futuro ameaçados de forma abrupta."
Nesse cenário, cresce o risco de aumento de casos de suicídio, doenças mentais e uso de drogas e álcool. "É uma situação de sofrimento que pode perdurar por muitos anos. E não se pode minimizar a perda de cada pessoa, seja de parentes, perspectivas trabalho ou sonhos. Todas as perdas podem ter consequências negativas", diz.
Somando os registros de todas as especialidades médicas, os atendimentos na rede primária de saúde de Brumadinho aumentaram 63% no primeiro quadrimestre de 2019, ante o mesmo período de 2018, saltando de 33 mil para 54 mil.
A situação se repete na Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Antes do rompimento, o número máximo de atendimentos em um plantão de 12 horas registrado pela Secretaria de Saúde foi de 165. Após a lama, o teto de atendimento subiu para 280.
As contas da prefeitura projetam alta de R$ 15 milhões em 2019 com gastos no setor de saúde, chegando no período a R$ 70 milhões ante R$ 55 milhões em 2018.
Os recursos para cobrir a diferença sairão de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 31 milhões, para dois anos, fechado entre a Vale e a força-tarefa do Ministério Público que trabalha no levantamento dos impactos da lama na comunidade.