Fábrica no Rio Grande do Sul: debate sobre validade de programas industriais ganha força no mundo pós-pandemia (Leandro Fonseca/Exame)
Publicado em 22 de janeiro de 2024 às 21h36.
Última atualização em 4 de novembro de 2024 às 14h42.
Política industrial é assunto divisivo na economia. Para economistas contrários, diga-se, não é assim tão divisivo: a intervenção estatal, quase sempre, não traz ganhos de produtividade, gera distorções de alocação de capital e traz uma conta que será paga por gerações futuras. Os que apoiam, por sua vez, veem com bons olhos um Estado empreendedor — especialmente priorizando setores com alta agregação de valor, como costuma ser o caso da indústria, o que permitiria um crescimento sustentável. Trata-se de um desses assuntos "Fla-Flu" na economia.
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O anúncio da nova política industrial brasileira nessa segunda-feira, 22, alimentou expectativas e reacendeu velhos medos de economistas. Analistas econômicos ouvidos pela EXAME apontam que a apresentação de hoje se assemelha mais a uma "carta de intenções", que reflete um desejo de maior complexidade econômica e proteção frente à fragmentação geopolítica cada vez mais presente desde a pandemia de coronavírus.
O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) vem dando destaque a um processo que chamou de "slowbalization" e de aproximação de cadeias produtivas. Mas, para quem observa os movimentos da economia, o novo plano de R$ 300 bilhões de apresentado nesta segunda-feira traz erros conhecidos, como subvenções, créditos tributários, compras diretas e priorização de setores específicos.
"A política industrial que está sendo lançada é mais do que a gente já conhece no passado. Fica a dúvida se vai funcionar de fato. Não há muita ideia em relação à métrica de eficiência desses programas", diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. "É um programa extremamente ambicioso em termos de financiamento em gastos no momento que a situação fiscal brasileira não permite isso."
O mercado financeiro parece concordar. O Ibovespa fechou o dia em queda de -0,81%, aos 126.602 pontos. Pesou para os investidores a preocupação fiscal e a política industrial bilionária anunciada. Além disso, o dólar fechou em alta de 1,24%, vendido a R$ 4,988.
Para Vale, os governos petistas não sinalizaram em nenhum momento que buscaram entender o que foi eficaz ou ineficaz nas políticas industriais dos mandatos anteriores de Lula e no da ex-presidente Dilma Roussef.
"Esse tipo de ideia, que sempre se colocou no PT, de fazer grandes projetos de investimento para tentar gerar crescimento e isso gerar arrecadação e diminui a dívida lá na frente, nunca deu certo no passado. A gente infelizmente está tentando reviver o que não deu certo", diz Vale.
Costuma-se dizer que o "diabo mora nos detalhes". Em política industrial, isso parece ser ainda mais verdade. "O posicionamento do governo, a meu ver, é bem-vindo, mas o diabo mora nos detalhes", diz Felipe Novaes, economista e analista de Indústria na Tendências Consultoria. "Podemos concordar sobre as intenções e metas aspiracionais, mas muito pode dar errado nos meios e nos instrumentos."
Segundo Novaes, ao se analisar as críticas, é importante frisar que não se trata de "antagonismo" ou "torcer contra" o desenvolvimento industrial do país. "Mas entender, entre os instrumentos elencados, se eles são reconhecidos tecnicamente como a melhor via para se fazer isso ou não", afirma. "Pouco se fala da implementação."
Algumas dúvidas, como levantou o perfil Valor Agregado, no Twitter, seguem em aberto, como o que há de novo na política; o que há de velho que funcionou (ou não); por que funcionaria agora; e se a nova medida seria suficiente para estancar a desindustrialização do país.
Um ponto elogiado da apresentação foi a vontade de melhorar processos burocráticos e de propriedade intelectual.
"Vemos com bons olhos iniciativas do ponto de vista de transferência de tecnologia, por exemplo. Foi enfatizada a questão de acelerar procedimentos de propriedade intelectual, melhora de arcabouço regulatório de inovação", afirma Novaes, da Tendências. "Têm iniciativas do governo que vão na direção de o Estado ser um catalisador da iniciativa privada."
Vale, da MB Associados, concorda com ressalvas. Segundo ele, pensar a questão de acelerar o processo de patentes e reforçar qualificação dos estudantes, com centros tecnológicos, precisa sempre ser feito e incentivado.
"Mas o grosso do pacote com grandes investimentos, grandes projetos, grandes comitês e grupos de trabalho é uma coisa que não é exatamente o que a gente precisava agora", afirma. "É um processo que a gente precisaria ter de uma retomada mais consistente do esforço fiscal pros próximos anos, políticas de melhora regulatória que aparecem muito pontualmente na proposta do governo."
Os economistas questionam a viabilidade dos recursos anunciados. "Permanece como um ponto de análise se é viável essa reserva que foi definida a partir do BNDES, de R$ 250 a 300 bilhões", pontua Novaes.
Para Roberto Ellery, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), o BNDES está ressuscitando a TJLP, taxa de juros subsidiada, ao criar novos títulos para oferecer crédito barato.
“Os dados recentes mostram que o fim da TJLP abriu espaço para o setor privado ofertar crédito. Isso vai mudar com essa nova política. Além disso, não vi nenhum debate sobre cotas de exportação. É possível medir a eficiência de uma empresa quando ela exporta. Isso significa que o produto é competitivo. Nada sobre isso foi debatido”, diz.
Ele resume a política industrial lançada pelo governo como “mais do mesmo”. Segundo ele, o PT repete programas que deram errado no passado e que não impulsionaram o crescimento da indústria ou da economia.
Não se pode alegar, porém, que o governo Lula esteja desalinhado com o zeitgeist do seu tempo. Pelo mundo afora, pululam políticas industrias de todo tipo. Em especial, os Estados Unidos nos últimos anos investiram pesado em tentativas de nacionalizar a indústria de microchips (Chips Act) e tecnologias para a transição energética e infraestrutura (o chamado Inflation Reduction Act).
O número de legislações e normativas que ampliam políticas industriais está em crescimento constante no mundo, como mostra o gráfico extraído do artigo “A nova economia da política industrial”, uma revisão da literatura sobre o tema feita no ano passado pelos economistas Réka Juhász, Nathan Lane e Dani Rodrik.
Os autores destacam, por exemplo, que países de renda mais alta — como os do G20 — são grandes usuários de política industrial. Embora a política industrial seja praticada em todo o mundo, ela pode, de fato, ser mais prevalente em países de renda mais alta.
Para Vale, da MB Associados, tentar comparar com os Estados Unidos e China, como foi falado na apresentação do novo plano, "não faz muito sentido".
"Os Estados Unidos estão pagando um preço fiscal enorme do que está sendo feito e está se cobrando a dívida do que fez de excesso de política industrial nos últimos anos sem a garantia também de que vá funcionar", afirma. "No caso chinês, o país cresceu com muita intensidade, mas não foi particularmente por conta de política industrial. Foi a quantidade absurda de gente que migrou da área rural para a área urbana que fez esse crescimento estrondoso. No Brasil, aconteceu a mesma coisa nos anos 1950, 1960 e 1970. O crescimento brasileiro era enorme, não por conta de política industrial, mas por conta de um processo forte de urbanização."
Uma das virtudes da revisão feita por Rodrik e seus coautores, na opinião do professor de economia da FGV, Samuel Pessoa, foi a "melhor mensuração desse tipo de política pública (com ajuda de inteligência artificial) e em trabalhos muito benfeitos, em termos de determinação de causalidade, que mostram sucesso de políticas industriais em casos específicos".
"A volta da política industrial trouxe atenção para a escassez de dados sistemáticos, e a academia começou a avaliar a prática global. Trabalhos recentes esclareceram questões conceituais em torno da política industrial e fornecem uma visão sobre a prática contemporânea", escreveram Rodrik e seus coautores.
Um exemplo nesse sentido é a avaliação sobre a política para Indústria Pesada e Química (HCI, na sigla em inglês) na Coreia do Sul, levada a cabo pelo então presidente Park Chung-hee. Segundo os autores, setores escolhidos para as políticas de incentivos de fato se destacaram no longo prazo, levando a uma vantagem comparativa.
Para os autores, se "o diabo está nos detalhes" e, para acertar na política industrial, muitos desses detalhes pesaram a favor. "A pesquisa emergente, embora incompleta, está esclarecendo onde e quando as políticas funcionaram e seus mecanismos", alegam.
O governo Lula 3 precisará demonstrar rapidamente que dará atenção aos detalhes e às boas práticas internacionais -- e, sobretudo, que aprendeu com o passado.