Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, durante seminário em Brasília, dia 19/06/2017 (Ueslei Marcelino/Reuters)
Clara Cerioni
Publicado em 12 de outubro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 14 de outubro de 2019 às 12h08.
São Paulo — Há duas semanas, o ex-Procurador-Geral da República Rodrigo Janot fez uma revelação para veículos de imprensa que caiu como uma bomba: em 2017, no auge de sua atuação à frente da Operação Lava Jato, ele teria ido armado ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de matar o ministro Gilmar Mendes e depois se suicidar.
Janot adiantou que a história estaria descrita em seu livro de memórias, "Nada Menos que Tudo" (Editora Planeta), que foi lançado na última semana.
A veracidade da história foi questionada e houve quem sugerisse que era apenas um golpe de marketing. Se foi, não deu muito certo: nas sessões de autógrafos que fez em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, houve pouca procura e presença zero de autoridades públicas.
As consequências práticas, no entanto, foram bem concretas: houve uma ordem de busca e apreensão em endereços de Janot, ordenada pelo STF, que levou à apreensão de um revólver. Mais recentemente, Janot pediu licença da OAB-DF e com isso está impedido de advogar.
Apesar da curiosidade sobre o episódio ter gerado interesse no livro — inclusive desta repórter que vos escreve —, o conflito só é narrado nas páginas finais da obra e não cita Mendes nominalmente.
"Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça com minha filha", descreveu Janot aos jornalistas Jaílton de Carvalho e Guilherme Evelin, que organizaram em texto suas narrações.
Há outros pontos de interesse, é claro. Janot foi um dos protagonistas da maior operação contra corrupção da história do Brasil, que desmantelou esquemas bilionários entre empreiteiras e políticos e prendeu gente como Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e Delcídio do Amaral, ex-líder do governo de Dilma Rousseff (depois absolvido).
Esta análise vai se restringir aos acontecimentos da gestão de Janot, entre 2013 e 2017, que são as narradas na obra.
Nas 256 páginas não há nenhuma revelação tão bombástica quanto a tentativa de matar o ministro do STF. Há apenas uma página destinada ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que acabaria preso em abril de 2018, durante mandato da sucessora de Janot, Raquel Dodge
No entanto, há críticas relevantes de Janot a praticamente todas as figuras centrais envolvidas na operação, incluindo, obviamente os parlamentares investigados. A abordagem da imprensa sobre a Lava Jato também transpassa praticamente toda a obra.
No primeiro capítulo, nomeado "Ele não" — simbólico, considerando que esse foi o mote da oposição à candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro, no ano passado — o ex-PGR descreve as ameças que recebeu, em 2015, para não investigar Cunha, hoje preso por corrupção e lavagem de dinheiro.
As investidas vieram, segundo ele, do ex-presidente da Câmara Henrique Alves (PMDB-RN) e também do à época vice-presidente, Michel Temer.
"Esse homem (Cunha) é muito perigoso e a gente não sabe quais as consequências poderão vir dele. Então apelamos para que o senhor não leve a cabo essa investigação, que a arquive", narra Janot sobre um diálogo com Temer.
As críticas no livro também atingem figuras que foram aliadas do ex-PGR na Lava Jato, como a força-tarefa de Curitiba, chefiada por Deltan Dallagnol. Em um trecho da obra, o ex-PGR narra as tentativas de Dallagnol para inverter ordens da operação, para que eles conseguissem denunciar Lula com rapidez.
"Precisamos que você inverta a ordem das denúncias e coloque a do PT primeiro', disse Dallagnol, logo no início da reunião. Ele já tinha feito uma sondagem sobre essa possibilidade de inversão de pauta numa conversa por telefone com um dos integrantes da minha equipe, e agora reafirmava o pedido pessoalmente. 'Não, eu não vou inverter. Vou seguir o meu critério. A que estiver mais evoluída vai na frente. Não tem razão para eu mudar essa ordem. Por que eu deveria fazer isso?'", relata Janot, que define que o ex-presidente petista era um "objeto de desejo".
Em um outro momento, o ex-PGR questiona o fato de Sergio Moro, ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, ter aceito o cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro.
"Souza [um procurador] disse que a intenção da força-tarefa era 'horizontalizar para chegar logo lá na frente', e não 'verticalizar' as investigações, e que, por isso, teríamos dificuldade em fundamentar os pedidos de inquérito. O que seria 'horizontalizar para chegar logo lá na frente'? Não entendi direito o conceito. Creio que meus colegas também não. Só depois de muito tempo, quando vi Sergio Moro viajando ao Rio de Janeiro para aceitar o convite para ser o ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, é que me veio de novo à cabeça aquela expressão", relata Janot.
E depois continua: "Horizontalizar implicaria uma investigação com foco num determinado resultado? Eu não quis imaginar isso lá atrás e também não quero me esticar nesse assunto agora, mas isso ainda me incomoda um bocado, sobretudo quando penso em dois episódios separados no tempo, mas muito parecidos. Estou falando dos vazamentos de trechos de depoimentos de Youssef e do ex-ministro Antonio Palocci na reta final das eleições presidenciais de 2014 e 2018, respectivamente".
Janot avalia que as declarações de Youssef não tinham valor jurídico, mas tiveram enorme impacto eleitoral.
São interessantes e curiosos os episódios em que Janot narra as peregrinações ao seu gabinete de parlamentares que poderiam ser alvo de seus inquéritos.
"Políticos que não queriam ser investigados mas também não queriam passar a impressão de que estavam contra a faxina na Petrobras me pediam audiências, mandavam cartas, presentes, faziam promessas e, em momentos de descompressão, choravam".
São citados nomes como Aécio Neves (PSDB-MG), Valdir Raupp (PMDB-RO) e Henrique Alves (PMDB-RN).
Justiceiro e não corrompível: apesar de disparar críticas para praticamente todos os citados no livro, inclusive ministros do STF, Janot não aponta nenhuma falha sua como PGR.
Ele nega veementemente todas as tentativas de seduzi-lo com regalias para que mudasse ordens de operações ou poupasse algum investigado.
"Minha atuação seria [na Lava Jato], como sempre foi, profissional, técnica, objetiva e transparente", escreve. Seu lema, citado em diversas vezes, é "pau que dá em Chico também dá em Francisco", numa referência à democratização de suas investigações.
Quando desconfiaram de que ele poderia se render à Dilma, diz: "Será que achavam mesmo que a presidente da República poderia manipular o procurador-geral? [...] Isso só acontece se o escolhido for fraco ou submisso. Definitivamente não era o meu caso. Ao atacar o governo com o intuito de me atingir, alguns investigados estavam apenas minando as bases das estruturas políticas, ou seja, abrindo novos caminhos para o avanço da Lava Jato".
Em toda a obra há um posicionamento maniqueísta dividido entre bem e mal — a única figura que não recebe nenhuma crítica é Teori Zavascki, ex-relator da Lava Jato no STF, morto em 2017, em um acidente de helicóptero.
Apesar de perder ritmo e se tornar repetitiva na sua segunda metade, a biografia tem o mérito de organizar, em ordem cronológica, de forma detalhada e bem escrita, os quatro anos de turbulência política e econômica que tomou o Brasil durante sua gestão e cujas consequências são sentidas até hoje.
"Agora que vejo esse movimento vasto [de enfraquecer a Lava Jato], de múltiplas procedências, para 'estancar a sangria com o Supremo, com tudo'. [...] Com este relato na primeira pessoa, o leitor se assim entender, poderá me criticar pelo que fiz ou deixei de fazer, mas não pelo que terceiros acham que eu fiz ou deveria ter feito".