Uma dúvida importante que foi levantada diz respeito à aplicabilidade das metodologias propostas pela ANA, argumentam os advogados Isadora Cohen e Matheus Cadedo (Reprodução/Reprodução)
Da Redação
Publicado em 14 de dezembro de 2022 às 06h14.
Por Isadora Cohen e Matheus Cadedo*
Dia 12 de dezembro, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), realizou a audiência pública nº 001/2022[1], que apresenta a minuta de uma norma de referência sobre metodologias de indenização de investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados nos contratos de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
A iniciativa segue o ritmo do novo marco de saneamento, que atribuiu à agência um papel relevante na busca da padronização e uniformização regulatória do setor, marcado pela existência de diversas agências reguladoras infranacionais.
A discussão sobre as indenizações eventualmente devidas diante do término de contratos de saneamento é um tema relevante, até para conferir segurança ao ambiente de negócios do setor. Inicialmente, ao se analisar a proposta feita nesta semana, o que se constata são alguns avanços nas metodologias de indenização.
A ANA propõe diversos conceitos até alinhados com boas práticas nacionais e internacionais - Custo Histórico Contábil (CHC)[2], Valor Justo (Fair Value)[3] e de Valor Novo de Reposição (VNR)[4] -, mas que terão sua aplicabilidade dificultada se não forem esclarecidos outros temas adjacentes fundamentais.
A Audiência contou com a participação de alguns agentes do setor e a proposta do novo normativo recebeu contribuições que merecem destaque.
Uma dúvida importante que foi levantada diz respeito à aplicabilidade das metodologias propostas. Em especial, sua aderência aos contratos de programa vigentes e outros contratos celebrados antes da vigência do novo marco. Esse ponto é importante já que na hipótese de término de tais contratos, os municípios deverão indenizar os operadores (públicos ou privados) dos serviços e esse tema pode impactar planos de novas concessões ou privatizações.
Para além da aplicabilidade da norma, é preciso também ter clareza quanto ao método de cálculo das indenizações. É isso que permite a avaliação precisa dos montantes das eventuais indenizações. Nessa esteira, os conceitos de "bens reversíveis" e "bens vinculados à operação” foram tratados de forma genérica[5]. Na prática, a falta de clareza sobre o tratamento desses temas não nos permite ter um cálculo claro sobre as indenizações. Será que tais definições serão trazidas pela ANA (no seu papel de orientadora de boas práticas regulatórias) ou os próprios contratos e agências infranacionais serão incumbidos de sua definição?
Outro ponto que pode vir a gerar problemas, se não for melhor delimitado, é a utilização da chamada base de ativos regulatória (BAR), como crivo metodológico para o cálculo de pleitos de indenização. A BAR constitui o conjunto de ativos utilizados como componentes tarifários nos processos de revisões, conduzidos pelas entidades reguladoras infranacionais. Ou seja, cada agência local ou regional pode ter o seu próprio arcabouço regulatório, com regras e métodos específicos para a apreciação do tema.
Ocorre que a norma proposta pela ANA prevê que a metodologia de cálculo de indenizações deverá ser consistente com a regra utilizada pelo regulador infranacional para a formação da BAR, tanto nos contratos não licitados (art.18), quanto nos licitados (art.23).
A questão se intensifica em face da realidade institucional dos diversos reguladores de saneamento do país. Muitas agências nacionais ou regionais não contam com um arcabouço de ativos regulatórios atualizado ou de boa qualidade técnica. Com isso, sua utilização no cálculo de indenizações pode ser prejudicial ou desproporcional à alguma das partes do contrato eventualmente extinto. Talvez fosse o caso de estabelecer parâmetros e diretrizes para a composição da própria BAR, nos entes subnacionais, garantindo maior grau de uniformização às análises.
Por fim, vale fazer uma análise das próprias metodologias de indenizações apresentadas em face de outras alternativas interessantes e que também encontram respaldo nas boas práticas. Tal como dissemos, os métodos propostos pela ANA seguem uma lógica de precificar ativos não amortizados ou depreciados, seja através do custo contábil, de um valor de reposição ou do estabelecimento de um valor justo, baseado na ideia da busca da precificação da venda de um eventual ativo, em uma livre transação.
Contudo, essas não são as únicas possibilidades à disposição do regulador e das partes contratantes. O Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP)[6], por exemplo, apresentou recentemente um trabalho sobre novos métodos de cálculo de indenizações por investimentos não amortizados, no caso da extinção antecipada de contratos.
A lógica seria a aplicação do chamado princípio “no better nor worse”, que busca a plena neutralização dos danos suportados pela concessionária, mantendo os investidores do projeto em situação semelhante à que estariam caso o contrato prosseguisse até o seu termo final. A ideia por trás de tal sistema não é a atribuição do valor aos bens não amortizados ou depreciados do projeto, mas sim a restituição do valor e da remuneração aplicadas aos projetos.
Para o cálculo da indenização seria aplicado o conhecido “critério financeiro”, em que a indenização é calculada por meio da apuração do saldo de capital, próprio e de terceiros, existente no momento da extinção do contrato de concessão. A partir disso, descontam-se determinados valores ainda não empregados pela concessionária e ainda disponíveis a ela, como o saldo de caixa e valores a receber, de modo que a indenização é diretamente derivada dos valores aportados à concessão pelos financiadores, demais credores e sócios da concessionária, na forma de equity ou de dívida, visando a realização dos investimentos em bens reversíveis relacionados à exploração do objeto contratual, ainda não restituídos, amortizados ou distribuídos.
O método, de cálculo substancialmente mais simples, também seria capaz de melhor evitar eventuais perdas e prejuízos aos investidores, garantindo a condição de neutralidade com o fim dos contratos. Talvez seja oportuno comparar esses diferentes métodos, levantando seus prós e contras, bem como viabilidade - e simplicidade - de sua aplicação eventual aos contratos de saneamento.
A simplificação de metodologias parece ser uma boa saída para o contexto regulatório do setor. Possivelmente, em vista das particularidades de cada contrato e de cada regulação infranacional, a sofisticação de conceitos traga desafios acentuados e muito caros à dinâmica contratual. Os custos transacionais de adesão a tais métodos pode ser elemento inviabilizador de sua adesão.
Nesse sentido, talvez a ANA devesse trabalhar em um normativo que contivesse um conteúdo mínimo de elementos que devem compor as metodologias de indenizações. Oferecer um conjunto de alternativas que poderá ser escolhido pelo regulador infranacional diante da sua capacidade gerencial de implantação e gestão dessas metodologias.
[1]Disponível em: https://participacao-social.ana.gov.br/Consulta/125. Acesso em 12 de dezembro de 2022.
[2]Segundo a minuta é a metodologia de avaliação pelo custo histórico contábil; compreendida como avaliação por meio do custo de aquisição ou de construção dos ativos corrigido por índice de inflação e ajustado por teste de recuperabilidade (impairment).
[3]Segundo a minuta é o valor que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma livre transação entre participantes do mercado na data de mensuração do valor do ativo.
[4]Segundo a Minuta é o valor necessário para a substituição de um bem reversível do prestador por outro com as mesmas funções, qualidade e capacidade do bem existente.
[5]A minuta classifica os bens reversíveis como o “subconjunto dos bens vinculados à operação delegada do serviço imprescindíveis para a continuidade da prestação do serviço”. Já os bens vinculados à operação como o “conjunto maior, formado pelos bens necessários e os imprescindíveis para a prestação do serviço objeto da concessão”.
[6]Veja-se mais em: Extinção antecipada de contratos de parceria - YouTube. Acesso em 12 de dezembro de 2022.
*Isadora Cohen é sócia-licenciada da ICO Consultoria. Foi a primeira presidente do Infrawomen Brazil. Fundadora e apresentadora do Infracast. co-coordenadora do Grupo de Estudos em PPPs, Concessões e Privatizações na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo
*Matheus Cadedo é graduado em Direito pela Fundação Getúlio Vargas e consultor jurídico da ICO Consultoria. experiência de pesquisa no programa de formação pública (Efp) da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). É integrante do núcleo de pesquisa do Grupo Supremo em Pauta da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), como Pesquisador Júnior.