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Milícia tem mais poder que tráfico no RJ, diz professor

Sociólogo que estuda violência na Baixada Fluminense há 25 anos diz que as milícias têm alta penetração na política e na economia

ALVES, DA UFRJ: o Estado foi o organizador das milícias no Rio de Janeiro / Divulgacão (EXAME/Divulgação)

ALVES, DA UFRJ: o Estado foi o organizador das milícias no Rio de Janeiro / Divulgacão (EXAME/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 17 de março de 2018 às 08h08.

Última atualização em 23 de abril de 2018 às 14h34.

A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro completou um mês na sexta-feira em meio a questionamentos sobre sua eficácia e protestos contra sua continuidade diante do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), morta na última quarta-feira 14, em pleno centro da cidade.

Com um mês desde seu início, a intervenção ainda fez pouco para mudar o quadro de violência, provocado, segundo analistas, por um cenário complexo de disputa entre forças do estado, traficantes e milícias. Segundo um levantamento do portal G1, grupos milicianos têm sob sua influência áreas de 11 municípios na região metropolitana do Rio, onde vive um total de 2 milhões de pessoas. Originalmente compostos por policiais civis e militares, bombeiros e agentes penitenciários, esses grupos armados controlam diversos negócios (como distribuição de água e gás), funcionando como um estado paralelo.

Até agora, a intervenção militar não realizou nenhuma ação nas áreas controladas pelos milicianos. EXAME Hoje conversou com o sociólogo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor do livro Dos Barões ao Extermínio: a História da Violência  na  Baixada Fluminense, José Cláudio Souza Alves, sobre a atuação das milícias na Baixada, região com os piores números de violência do Estado.

Quando as milícias começaram a atuar na Baixada Fluminense?

A partir de 2004 já começam a aparecer alguns registros. A partir de 2007 as milícias se formaram em imagem e pensamento na Baixada com informações mais claras dos procedimentos e modo de funcionamento. E é a partir de 2010 que há um crescimento exponencial. Em 2016, na última eleição municipal, já havia informações de toda uma expansão e participação das milícias na política e de controle de muitos negócios. Hoje temos esse quadro de penetração na economia e na política muito grandes.

Qual é a situação atual? Os grupos ainda estão em expansão na Baixada?

Sim, estão em luta por expansão, por controle territorial, controle de negócios, o que inclui também o próprio tráfico de drogas. Essa dicotomia entre tráfico e milícia quase não existe. As milícias fazem vendas diárias de drogas e acordos com facções de traficantes. A facção que tem mais acordo com as milícias é a do Terceiro Comando Puro, mas isso não impede que outras façam acordos. E isso acontece na Baixada como um todo.

Quais outros negócios estão na mão das milícias?

Venda de água, de gás, de aterro, locação para lixões clandestinos, venda de área para campanha eleitoral. A gama de negócios das milícias é muito grande e tem se ampliado. Em alguns lugares eles vendem propriedades de terras, lotes de terras e cada negócio desses vai se articulando com o outro. Você vê o caso da Marielle, ela foi assassinada num estado supostamente de direito, mas como é uma rede muito bem conectada, você pode ser morto não em função de uma denúncia que você fez de um comportamento policial, mas sim porque acabou atingindo a ponta de algum desses negócios.

Qual a dimensão do volume de dinheiro que estamos falando?

Só para dar uma ideia: em Duque de Caxias, a milícia controla uma empresa de terraplenagem e, para cada caminhão que chegava, cobravam 1.000 reais. Chegavam mais de 30 caminhões por dia, são mais de 30.000 por dia só com esse negócio em uma área. O volume de interesse e de dinheiro é muito alto e eles vão matar para manter esses interesses, é assim que a milícia opera. A base da milícia sempre foi grupo de extermínio, a milícia é uma sofisticação do grupo de extermínio.

De mais ou menos quantos grupos milicianos estamos falando?

É muito disputado. A Baixada é muito grande, em cada área há diferentes grupos disputando o controle. Em Duque de Caxias, que é o maior município da Baixada, com 1 milhão de habitantes e 3 bilhões de orçamento da prefeitura, há um grupo que funciona como um estado e tem o controle total de dois bairros: Pilar e São Bento. Lá, a milícia vende terrenos, água, aterro, espaço para jogar lixo clandestino… Eles inclusive têm cargos na prefeitura. Não há nada que arranhe essa estrutura toda. É uma base eleitoral absurda, conseguiram eleger vereadores e estão desmontando a área de proteção ambiental, a APA Morro do Céu, com a invasão e venda de lotes. Infelizmente, os interesses dele são muito grandes, por isso que o que aconteceu não é nada. Estamos falando de situações de poder político e econômico muito elevados.

Como chegamos a essa situação? Que fatores explicam o avanço das milícias?

Estamos falando de uma região onde a atuação de grupos de extermínio vem do final dos anos 1970. Com a ditadura civil-militar, a polícia ganhou o status de força auxiliar repressora ostensiva, da forma que ela é até hoje. A partir desse momento surgem os esquadrões da morte na Baixada, financiados por empresários e comerciantes da região que usavam esses grupos para proteger seus interesses, resolver problemas locais. O apoio político para esses grupos operarem foi dado pela ditadura. Esse é o primórdio desses grupos que vão virar uma máquina de matar e explodir a partir dos anos 1970. Isso ganhou um novo patamar quando, nos anos 1990, vários desses matadores se elegem para cargos públicos, em Belford Roxo e em Duque de Caxias, por exemplo. Esses matadores fizeram uma espécie de lavagem de suas cidadanias ao se elegerem: se tornam políticos, não se envolvem mais com matanças, mas têm gente que mata por eles. Essa é a trajetória de vários homens na Baixada. O que as milícias fizeram foi dar continuidade a isso, mas incorporando uma dimensão de controle de negócios. Ou seja: o estado não foi corrompido, nem deturpado, nem sequestrado. Não é uma ausência de estado. O estado é o organizador. Prefeitos, vereadores, até o judiciário já esteve aqui dando carteirinha para os matadores, e depois as milícias, atuarem. É uma estrutura atuando desde a década de 1970 de maneira intocada. Com as milícias, tudo isso ganha uma sofisticação ainda maior.

Como o assassinato de Marielle pode ser compreendido neste contexto?

Ela denunciou a atuação do 41º Batalhão da Polícia Militar em Acari. Mas o que o Terceiro Comando Puro vende de drogas em Acari é uma estupidez.  Um quilo de cocaína custa 6.000 reais na Bolívia. Chega em Acari, é batizado com pó de mármore, talco e fermento para bolo e vira 47.000 reais no varejão. Agora, imagine uma favela do tamanho de Acari e quantas toneladas estão vendendo de droga por semana. Não existiria nem tráfico, nem comandos, nem milícia, se não fosse a estrutura que a polícia tem no Rio. O que acontece em Acari é um acordo. Como é que alguém vai atrapalhar o terrorismo que a polícia está fazendo com os moradores? Ninguém vai fazer isso, ninguém vai permitir que uma favelada, mulher, de esquerda impeça isso.

Há relatos que apontam uma mistura entre tráfico e milícia. Onde está a diferenciação?

Um traficante nunca vai ser um candidato. Existe uma diferença muito grande. O traficante nunca vai ter uma carreira de ascensão. No máximo, vai ser preso e vai controlar a facção da prisão. O Fernandinho Beira-Mar conseguiu colocar oito parentes dele na Câmara de Caxias, mas isso é o máximo. O traficante está restrito na escala de poder à área onde ele está.  Mas eles não conseguem eleger pessoas como a milícia. A milícia tem um poder maior, muito superior, não tem comparação.

Inicialmente, as milícias eram formadas por agentes do estado, como policiais e bombeiros. Esse perfil mudou? Qual é o perfil atual especificamente na Baixada?

Na Baixada está mudando bastante, a partir da milícia Liga da Justiça, de Campo Grande, que está expandindo para o Rio de Janeiro como um todo. Está havendo um “civilismo” cada vez maior dentro da milícia, agora civis estão sendo regimentados com muito mais intensidade na Baixada, em Itaguaí, Seropédica e na Zona Oeste, onde há uma série de relatos de milicianos civis. O miliciano PM da estrutura policial ganha em torno de 400-450 reais por semana. O miliciano civil ganha em torno de 700 reais.

Por que essa diferença?

Porque o miliciano policial opera por dentro, o salário dele como policial já está computado dentro dessa própria estrutura — para dar dimensão de como está tudo conectado com o estado. O civil não, ele vai depender única e exclusivamente do soldo da milícia, por isso ganha mais. Essa miliciação da estrutura policial possibilita que o tempo de trabalho do policial miliciano também seja de trabalho para a própria milícia. A mais-valia criminosa do policial é muito eficiente. É um negócio muito sofisticado. Eles têm hierarquia de funcionamento seguindo a hierarquia da própria estrutura policial.

Qual foi o efeito das UPPs na Baixada?

Com as UPPs, a Baixada virou um grande cenário de negócios. Elas tiveram o efeito de reorganizar o cenário do crime organizado no Rio de Janeiro, o tráfico veio para cá e começou a disputar as mesmas áreas com as milícias. É aí que o número de homicídios explode. Na Baixada se mata o dobro, em termos proporcionais, que no Rio de Janeiro. A grande reconfiguração que as UPPs trouxeram foi causar essa disputa com as milícias, que ao controlar as áreas aumenta o número de negócios e os negócios crescem, se transformando num mercado absurdo e incontrolável. Em Seropédica, o número de homicídios aumentou 155% de 2014 para 2015, porque o Comando Vermelho comandava áreas aqui que a milícia viu potencial e isso vira disputa, vira negócio. Então a milícia veio executando traficantes. A milícia que controla Seropédica levou uns três anos para conseguir estabilizar o controle na região, tomavam as favelas do Comando Vermelho, que conseguia tomar de volta, daí era conflito, morte… Até que em março de 2017, a milícia tomou de vez e o Comando Vermelho desapareceu daqui e até agora não voltou.

Há solução para o problema? O que o estado está fazendo e o que deveria fazer?

Não se pode dar respostas isoladas em uma só direção. Políticas públicas nas áreas que foram abandonadas é um começo, todo aquele leque que já conhecemos e protegeriam um pouco essa população para não ter que depender da grana do tráfico. Só que o estado não investe nada. A mudança que teria que ser uma ruptura total com toda essa estrutura do estado. Mas como vai fazer isso? Não estamos em uma situação favorável. O máximo que podemos fazer é tentar mostrar que é uma estrutura muito mais complexa e sofisticada do que parece. 

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