Agricultores: ameaças, mortes e trabalho escravo na comunidade dominada por madeireiros e fazendeiros (J R Ripper/Getty Images)
Clara Cerioni
Publicado em 14 de abril de 2019 às 08h00.
Última atualização em 14 de abril de 2019 às 08h00.
O Projeto de Assentamento Areia (PA Areia), no município de Trairão (PA), é a porta de entrada para uma imensidão de floresta disputada palmo a palmo por grupos de madeireiros que há décadas dominam a área. Cercado de Unidades de Conservação que formam uma das maiores áreas contínuas de floresta tropical do planeta, o PA Areia é uma rota privilegiada para acessar as madeiras de lei que ainda abundam ali.
Por isto, o projeto de assentamento apresenta intensa reconcentração dos lotes de reforma agrária, coleciona inúmeros episódios de violência, trabalho escravo e crimes ambientais já denunciados na Justiça Estadual e Federal do Pará. O acesso ao PA é controlado por madeireiros, que chegam a cobrar entrada para o local, uma área pública pertencente à União.
Em entrevista à Pública, o casal Osvalinda e Daniel Pereira e o agricultor Antonio de Paula Silva, incluídos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), falam sobre o histórico de violência, o convívio diário com as intimidações dos grupos madeireiros e a tentativa de implementação de modelos de agroextrativismo por meio da Associação de Mulheres do PA Areia, presidida por Osvalinda e apoiada pelos outros dois agricultores.
Todos temem o acirramento dos conflitos no governo Bolsonaro. “O governo tá dizendo que vai combater o crime organizado. E é isso que ele tem que fazer. Vá lá no PA Areia e combata o crime organizado”, desafia Daniel Pereira.
Em que ano vocês foram assentados no PA Areia e quando chegaram já havia conflito? Como foi essa chegada de vocês?
Antonio Silva: Eu cheguei em 1998. Já existia conflito na época em que eu cheguei. Existia uma madeireira dentro do assentamento já, colocada em 1998.
Osvalinda Pereira: Nós chegamos lá em 2001, eu e Daniel, atrás de uma terra sem problemas. Mas na chegada a gente já viu um correntão no portão, na entrada [do assentamento], e tivemos que pagar uma “licença” para entrar. Mas era um assentamento maravilhoso, com umas terras boas, uma vila nova e a gente pensava que estava tudo ok. Mas quando a gente buscava ou a associação de moradores ou o sindicato [de trabalhadores rurais] pra desenvolver a agricultura, era impedido. A gente foi mexendo a fundo: por que a agricultura ali não era desenvolvida?
Aí foi ver que tanto a associação de moradores quanto o sindicato e todos os órgãos da região eram manipulados pelos fazendeiros e madeireiros pra não desenvolver a agricultura, porque o que tinha de funcionar ali dentro era a madeira. Já havia o conflito e já havia várias mortes e ninguém comentava. A gente foi percebendo que, como agricultor, produzia pra se manter, mas não tinha chance. Você não tinha direito da prefeitura pra ir numa secretaria de agricultura, ou ir num sindicato, não tinha apoio e nem mesmo na associação de dentro do assentamento.
Foi quando a gente viu necessidade de vir buscar ajuda fora. Fomos convidados a participar de um programa do IPAM [Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia] pra trabalhar num projeto de agricultura familiar experimental, pra ver se ia funcionar na região [firmado em 2003]. Nós [Osvalinda e Daniel], seu Silva e mais umas três famílias dentro do Areia fomos selecionados no município de Trairão. E começamos a ser tachados de ambientalistas por não usar fogo nem agrotóxico, cuidar do meio ambiente da nossa área.
O projeto durou oito anos e nesse período a gente já resolveu abrir outra associação de moradores no assentamento: como não tinha apoio nem da associação, nem do sindicato e nem da prefeitura, nós decidimos abrir uma associação de mulheres junto com outros órgãos de fora e movimentos sociais. E decidimos trabalhar num outro sentido, com agroextrativismo. Incentivamos os agricultores a fazer plantio de safra, não usar veneno ou agrotóxico. Fomos mudando a visão dentro do PA Areia.
Daniel Pereira: A gente acabou enxergando que a associação de moradores que iniciou o assentamento já estava manipulada pelos grandes fazendeiros e madeireiros dali, um grupo de milícia organizado que vinha operando dentro do assentamento. E viu que as famílias estavam numa carência muito grande. Por isso surgiu a ideia de resgatar o direito das famílias que já estavam ali.
Nós consultamos o assentamento todo e colocamos em prática a ideia de consultar os órgãos da região, inclusive de municípios vizinhos, pra gente inverter essa situação que ainda está até hoje: o povo que está dentro do assentamento não tem o direito de sobreviver de acordo com o programa do Incra, de agricultura familiar.
As grandes empresas ilegais vivem atacando as famílias ali dentro. É uma vida muito crítica, que continua até hoje. As famílias acharam uma boa ideia abrir uma nova associação, com esse intuito de buscar novas experiências para a agricultura e novos apoios. E por esses motivos, começaram a surgir alguns problemas com as empresas ilegais.
Um pouco depois que vocês chegaram começou o processo de criação do mosaico das Unidades de Conservação na área de influência da BR-163…
Osvalinda: Sim. E aí que começou mesmo a ameaça. Nós já estávamos trabalhando com o IPAM nessa época quando veio a primeira proposta pra nossa associação fazer um projeto grande, pra a gente ajudar as empresas na exploração de madeira. Eles iam comprar máquinas, comprar caminhão e uma parte do dinheiro viria pra gente. Eu não aceitei porque nós abrimos uma associação pra não estar na mão deles, se a gente aceitasse ia estar na mão deles.
A partir desse momento que eu não aceitei, nossa vida começou a mudar. Era uma ameaça verbal o tempo todo, eles ficavam mandando recado dizendo que a associação não ia pra frente, que só ia prejudicar as pessoas, os agricultores. E assim começou a criar uma bola de neve contra a associação de mulheres lá dentro. Um dia eu fui fazer um tratamento de saúde em Santarém. Lá, eu estava numa casa de apoio e, conversando com uma assentada, ela me perguntou se eu conhecia uma mulher no Areia que chamava Osvalinda, que era presidente da associação de mulheres lá.
Eu falei: “conheço”. Mas eu não disse que era eu. Achei estranho porque a mulher era de Novo Progresso [município da mesma região do PA Areia]. E eu perguntei: “Por que?”. E ela falou: “Porque essa mulher tá jurada de morte. Ela vai morrer essa semana”. O chão parece que sumiu. E eu perguntei de novo: “por que?”. E ela: “Ah, porque essa mulher tá denunciando os madeireiros lá dentro. O Ibama entrou e queimou as máquinas deles, os caminhões. E é ela que tá denunciando.” Aí eu falei: “Essa mulher sou eu. Eu sou a Osvalinda, mas eu não tô denunciando ninguém não”.
Aí ela mudou de conversa, desconversou, disse que o marido tinha ficado sabendo. Aí na mesma hora o Daniel ligou pra mim, dizendo que os madeireiros já tinham ido lá no mesmo dia fazer uma proposta de serviço com ele. E eu falei: “Não conversa com esse povo, não fecha negócio nenhum”. Eu contei pra ele o que ela disse, que nós íamos morrer, que desde Uruará até Novo Progresso todos os fazendeiros e os madeireiros já tinham dado R$ 3 mil pra pagar os pistoleiros pra matar nós quatro: eu, Daniel, seu Silva e dona Jeci [esposa de seu Silva].
Eu tinha que morrer porque eles tinham que marcar o território e tinham que me eliminar de lá de dentro. Nem fiz a consulta, voltei e Daniel foi me buscar no Trairão, na cidade. Mas aí as motos [dos pistoleiros] já começaram a perseguir a gente. Quando eu cheguei em casa, só encostamos a nossa moto e chegaram duas Hilux cheias de homem em cima e as motos dos pistoleiros tudinho. Daquele dia em diante nossa vida mudou totalmente. Sem direito de eu falar que não queria essa vida pra mim.
Daniel: Quando eles me procuraram, eles queriam fazer um acordo, que eu não aceitei. Eu tenho uma casa ali num ponto da vila do assentamento que os caminhões [de madeira] tem que passar tudo ao lado dela. Aí deram uma ideia de me pagar cem reais pra cada caminhão que passasse ali com as madeiras. Que eu tenho a ver com caminhão de madeira deles? Eu falei: “Não tenho nada a ver com vocês. Nunca trabalhei com vocês”. E eles: “Não, mas nós temos uma proposta boa”. E eu falei que pra mim não fazia sentido. E eles falaram: “Você precisa do dinheiro pra fazer o tratamento de saúde da sua mulher”.
Porque direto eu estava nos hospitais com ela. E eles falaram que o dinheiro ia ser bom pra mim. E eu falei: “Não, pra mim não vai ser bom. Eu vou pegar um dinheiro com uma coisa que eu não sei que serviço que eu tô prestando pra ganhar esse dinheiro. Eu não mexo com nada ilegal. Todo mundo aqui me conhece”. E eles falaram: “Não, mas você pode aceitar. É um serviço só, cara”. E eu falei: “Não, deixa a Osvalinda chegar porque quem é a presidente da associação é ela”.
E isso foram os peões dos madeireiros. Eles falaram: “Eu vou marcar com os patrões lá, porque eles já articularam com todo mundo. Desde Altamira até a Serra do Cachimbo, todos os fazendeiros e madeireiros já tão prontos pra fazer esse acordo com você.” Eu não sabia o tamanho da articulação que já estava nos municípios.
Mas a gente não caiu nessa cilada. Foi quando a Osvalinda chegou de viagem, entendeu? E chegaram umas doze pessoas. Os patrões e uns quatro pistoleiros que chegaram. Um ficou na porta, outro dentro de casa e outro na janela. Eles queriam fazer a proposta pra gente aceitar esse dinheiro, diziam que a gente tinha contato com o ICMBio, com o Ibama. E a gente dizia que não.
Osvalinda: Foi daí que um dos madeireiros entrou na proposta e falou pra mim que tava com uma bolsa de dinheiro, que já tinha falado com o Daniel, que não aceitou o serviço com eles. E eles falaram pra eu aceitar a proposta deles: “Nós trouxemos esse dinheiro aqui porque a senhora tá fazendo tratamento, tá muito doente. E nós sabemos que vocês estão tentando levantar a associação. E esse dinheiro vai dar pra você fazer o tratamento e cuidar da associação.”
E eu falei: “Por qual motivo eu vou pegar esse dinheiro de vocês?” E ele falou: “Vou falar a real pra senhora. Eu tô sabendo que a senhora tá denunciando a gente pro Ibama e pro ICMBio. O pessoal dos órgãos falou que tem um casal que tá vindo aí e denunciando e nós sabemos que é vocês. Esse dinheiro é pra vocês não trabalharem mais com a associação e não mexer mais com a gente. O Ibama já entrou aqui, já queimou nossas máquinas.”
E eu falei: “Eu não sei o que tá acontecendo aí, é vocês mesmo. Porque o meu trabalho de ir lá fora é pra ir atrás de benefício pra associação ou cuidar da minha saúde. Eu não tenho nada a ver com o trabalho de vocês. Se vocês trabalham ilegal, é problema de vocês.” E eles: “Não, mas a senhora como presidente tá indo lá fora e esses benefícios que a senhora diz que tá trazendo tão prejudicando a gente”. E eu falei que eu não ia parar com o trabalho da associação. E ele falou que tinha trazido o dinheiro e que era pra eu aceitar. E eu falei: “Só aceito dinheiro seu se for pro senhor comprar nossos produtos.
O senhor não tem gente lá dentro, trabalhando no mato? Nós temos arroz, feijão, abacaxi, macaxeira, polpa de fruta. O que o senhor pensar pro senhor levar pros peão comer. Nós vende por quilo, por saco, nós pesa e o senhor paga o valor justo. Esse dinheiro nós pode pegar do senhor, do produto que a gente vender. Você não é parente nosso pra gente pegar dinheiro de vocês.” Imagina uma pessoa chegar assim com uma bolsa de dinheiro! Aí ele se zangou, se levantou e disse: “Dona Osvalinda, pobre só recebe dinheiro quando morre.”
E eu perguntei se ele tava me ameaçando. E ele: “Não, de maneira nenhuma eu tô te ameaçando. Só tô falando pra senhora que se o Ibama entrar de novo aqui dentro do Areia e queimar meus caminhões, minhas máquinas e meus empregados ficarem desempregados e se eles vierem aqui fazer alguma coisa, não fui eu que mandei não.” Eu falei que aquilo pra mim era uma ameaça. E ele falou: “Não to te ameaçando, to te falando que se eles vierem não fui eu que mandei, foi porque a senhora deixou eles desempregados”. Sabe quando some o chão? Eu só olhei pro Daniel e falei: “Se o senhor quiser matar a gente, pode matar. Não tem como nós dois correr de vocês aqui. Doze homens, tudo armado, não tem como a gente correr. Mas se você não matar a gente, na hora que eu sair daqui eu vou denunciar vocês.
Agora eu vou denunciar mesmo, mas por ameaça.” Eu não sei onde eu arrumei tanta coragem pra falar isso, eu tava tremendo. Ele levantou e falou que não queria mais conversa, disse que ia vir dois funcionários fazer acerto depois. Eu falei: “Não manda ninguém fazer acerto, não”. Ele apontou pra dois que tavam na sala e falou: “Amanhã de manhã fulano e beltrano vem aqui fazer acerto com vocês e acabou a história”. E eu falei: “Daniel, eles vão vir matar a gente aqui amanhã”.
A proposta deles era de um acerto, mas qual era o acerto, já que nós não queríamos dinheiro? Aí nós montamos na moto e fomos pro Trairão, fazer um BO. Na estrada, a gente cruzou com uma vizinha que vinha chorando na moto. Eles tinham falado na vila toda que era pra não se preocupar, que eu ia amanhecer morta, pra mostrar que quem mandava era eles. Nós fomos na Polícia Militar. Mas eles só colocaram a mão no nosso ombro e jogaram nós pra fora, como se a gente fosse cachorro. Veio uns pistoleiros seguindo nós pela estrada de moto, mas nós conseguimos despistar.
Aí a gente foi pra casa do vice-prefeito da época e nos escondemos lá. Quando foi no outro dia, a gente foi na Polícia Civil pra fazer o BO. Eles se recusaram, disseram que se fizessem o BO quem ia presa era eu. E eu falei: “Por que? Eu e meu marido fomos ameaçados de morte dentro da nossa casa”. E ele falou: “Pois é, mas se eu fizer o BO quem vai presa é a senhora, porque a senhora não tem advogada, não tem dinheiro, e eles têm. Eles podem alegar que é falso testemunho, que a senhora quer prejudicar eles.” E eu falei: “Pois então, faça um BO que eu vou pra cadeia”.
Ele fez um BO bem mal feito, mas fez. Eu peguei o BO e comecei a entrar em contato com os amigos de fora pra tentar fazer outro. Aí eu consegui um contato pra ir até Santarém na Polícia Federal e formalizamos a denúncia. Mas o trajeto pra ir pra casa foi aquela perseguição. Conseguimos ir de noite.
Voltando pra Trairão, a gente conseguiu ir até a Prefeitura, trocamos de carro escondido à noite e levaram a gente pra Itaituba. Mas na balsa de Itaituba já tinha gente deles lá esperando. Lá na Polícia Federal nós ficamos besta, lá já tinha um monte de denúncia em nome das pessoas que foram lá nos ameaçar. Com denúncia desde 1998, 1999, 2000. Denúncia velha de assassinato, morte, crime ambiental.
Daniel: A gente nem sabia com quem tava lidando. A polícia já sabia que existiam pessoas, grupos criminosos organizados e com muito dinheiro atuando ali, dominando as comunidades, fazendo trabalho escravo ali dentro do assentamento, como acontece até hoje por lá e não é uma coisa escondida. Todo mundo sabe. E aí ficamos mais assustados.
Como acontece o trabalho escravo na região?
Osvalinda: Eles dão uma moto sem documento, roubada, pra um rapaz que vai pro mato pra ele trabalhar. Só que depois eles cobram essa dívida e o que os agricultores recebem nunca cobre isso. Se a pessoa reclamar, eles matam. Agora, depois que a gente foi formalizando as denúncias, que eles acalmaram de matar os agricultores. Antes eles buscavam agricultor lá fora e depois que eles faziam o trabalho o pagamento era matar. Poucos saíam de dentro da mata.
Daniel: Morreu foi uma carrada de gente. Como que uma pessoa entra na mata e nunca mais sai?
Osvalinda: São coisas que acontecem e as pessoas não tem coragem de denunciar porque toda a família tá lá dentro. Muita gente já abandonou o assentamento. Minhas amigas que trabalhavam comigo foram tudo embora, disseram que iam embora pra não me ver morrer. Uma amiga me ligou dizendo outro dia dizendo que tava indo embora porque tava sendo ameaçada de morte, mas não tem coragem de denunciar. O povo lá dentro vive oprimido.
Vocês tem ideia de quantas pessoas morreram no PA Areia pelo conflito?
Daniel: Nivaldinho [agricultor] foi um que morreu esquartejado a facão, o Nelson [agricultor] foi esfaqueado por um pistoleiro deitado em cima do banco de um barco, morreu por falta de pagamento; o Cuca [agricultor] foi morto e sumiram com ele.
Osvalinda: Outra foi a Rosinha [agricultora], uma menina de 13 anos que estava grávida. Sumiu o corpo dela, até hoje não encontraram.
Daniel: O Gaúcho [agricultor] também que foi assassinado. Isso tudo dentro da vila do assentamento.
Osvalinda: Fora os outros que eles mataram e jogaram dentro das brasas da serraria. E o povo comentava: “mataram e jogaram dentro das brasas”. Quando fazem isso, o corpo não vira nem cinza, até a cinza desaparece. São várias mortes que aconteceram.
Daniel: As famílias sabem que os criminosos nunca foram punidos e continuam lá dentro. Você acha que eles têm coragem de denunciar? As famílias deles tão tudo ali dentro. Eles vão falar alguma coisa? As pessoas que começaram a estar do lado da gente, a maioria foi tudo embora. O terror continua lá dentro. Como você vai continuar trabalhando na comunidade nessa situação? Ameaçados, doentes. Estamos passando no médico, tentando recuperar nossa saúde. Eles não conseguiram atingir a gente na bala, mas conseguiram atingir na saúde.
Quando vocês entraram para o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos? Foi após algum episódio específico?
Osvalinda: Foi há uns três, quatro anos, após várias ameaças. A gente tá citando mais as principais ameaças. Fizemos vários BOs. Mas a última que mais abalou a gente e a nossa saúde física e mental foi a das covas. [Em maio de 2018, duas covas foram construídas nos lotes de Daniel e Osvalinda]. Deixou a gente sem chão. Você ser um agricultor e trabalhar como agroextrativista, não é um trabalho que você ganha rios de dinheiro, é um trabalho por amor à terra.
Você trabalha pra se manter, não pra enricar. Nesse dia, a gente levantou de manhã cedo e nós encontramos duas covas preparadas pra nós. Que mal que nós fizemos pra este povo? A gente busca fazer o bem. A gente tenta incentivar que as famílias não trabalhem no trabalho escravo, que eles trabalhem pra eles mesmos na terra deles. É isso que a gente faz. A gente passa pros agricultores que eles trabalhando pra eles mesmos eles ganham mais.
A gente já tá cansado de ver crianças manipuladas. É prostituição infantil com esses fazendeiros. Eles abusam das crianças, os pais não podem falar nada. As mulheres não podem participar da reunião da associação porque se não os maridos perdem o emprego. Eu não consigo ficar calada.
Daniel: Mas aí vem a palavra-chave. Por que continua acontecendo isso? Por que? Porque a autoridade local é dominada por eles. Nenhum vereador dá queixa disso, nenhum prefeito faz conta disso. Nenhum. E aí esse grupo criminoso vai ganhando mais poder de continuar atuando lá dentro. Eles têm apoio. É o crime organizado lá dentro que tem apoio.
Houve muita reconcentração de lotes no assentamento? Fala-se em fazendas sendo formadas no PA Areia.
Antônio: Isso é verdade. Tem muito fazendeiro que comprou área lá dentro e tem 20 lotes, tem 13 lotes no assentamento. Enquanto quem é proprietário da terra por direito tem 50 hectares. E eu fui ameaçado foi há poucos dias, agora em janeiro. Eu fiz um BO, mas isso chegou nos fazendeiros e eu fui ameaçado.
Como foi a ameaça?
Antônio: Tinha um cara que mora no Mato Grosso que era parente de um cara que mora no Areia e ele tava visitando lá. E esse cara disse que se ele não tivesse as armas pra matar a gente, ele ia mandar lá do Mato Grosso. E eu vi eles falando isso entre eles. Quando eles me viram, eles falaram: “Ah, mas tu tava aí?” E eu falei: “Tô”.
E aí eu escorreguei fora e fui registrar o BO. E a própria polícia abriu o jogo. E aí começou o boato que eu podia desterrar, se não eu podia aparecer morto. Depois, com poucos dias, apareceu três pessoas encapuzadas visitando a minha casa. Eu tava em casa, só que eu tava escondido. Eles não me acharam.
Aí foram lá num comércio perto que tem, tomaram cachaça e falaram que tavam atrás de um pra matar, mas não tinham achado. Eu ia largar de mão, mas quando eu soube eu fui fazer o BO em Rurópolis, tive que andar sei lá quantos quilômetros pra fazer o BO.
Há pistoleiros inscritos na relação de beneficiários do assentamento?
Antônio: A maioria dos pistoleiros tem. Ganham lotes do lado das fazendas do patrão. São os funcionários deles que trabalham lá. A maioria não é trabalhador.
E como o Incra se posiciona quando vocês formalizam denúncias sobre isso?
Osvalinda: Eu vou no Incra desde 2015 pra tentar legalizar os agricultores lá dentro. Me pediram duas vezes pra fazer lista dos filhos de agricultor que não têm terra. Eu fiz a lista. Lá tem 92 lotes abandonados porque muita gente saiu com medo ou porque não conseguia trabalhar. O Incra me pediu essa lista duas vezes, eu fiz e eles não colocaram. Em compensação, colocaram os fazendeiros e os funcionários na relação de beneficiários.
Os fazendeiros com 22 lotes tão na relação de beneficiários por meio de um monte de laranja. Isso já foi pro Ministério Público. Eles fazem financiamento com isso conseguem R$ 150, R$ 200 mil de crédito pra fazer curral e comprar gado. E os agricultores não conseguem nada. E todo mundo acaba tendo que trabalhar pra eles.
Daniel: Mas sabe por que? Os políticos dão apoio aos grupos que dominam todas essas terras. Não é só um fazendeiros. São grupos. Quem coloca ou tira o superintendente do Incra? Tem que ser no perfil deles. Não adianta ir no Incra e reclamar. Quando você chega lá, eles chegaram primeiro. Eles têm apoio das autoridades locais pro crime continuar organizado lá dentro.
Osvalinda: A máfia é tão grande que você não tem pra onde correr. Eles comandam toda a região.
Daniel: Essa região que a gente vive é coordenada pelo crime organizado. Se não for na base do crime organizado, isso não anda.
Estamos no início do governo do presidente Bolsonaro. Em campanha, ele falou em “acabar com os ativismos do Brasil” e fez várias declarações contrárias à pauta ambiental. Vocês sentem que o clima criado a partir da eleição pode motivar novos episódios de violência por parte desses grupos na região de vocês?
Osvalinda: Em janeiro, a gente recebeu um recado de um filho de Deus lá que tá fugido. E a gente recebeu um recado dele que agora a gente não precisa se preocupar mais, que agora o governo é a favor dele. Ele falou pra uns colegas nossos: “Agora, nós temos um presidente que vai nos apoiar.
Pode avisar pra dona Osvalinda que agora quem manda aqui somos nós”. Em dezembro, entrou a Polícia Federal lá pra dentro, fez uma apreensão e prendeu muita gente. E eu estava fora do assentamento. A PF ficou 15 dias lá dentro. E eles ficaram achando que era eu.
Mas agora nesse ano eles entraram tudo com as máquinas de novo. Isso não é denúncia. Todo mundo sabe, vê por satélite. Depois que Bolsonaro entrou, pra nós piorou. Você tá no assentamento federal comandado pelos madeireiros e cercado de reservas comandadas por eles. Quem somos nós pra esse governo? Nós não somos ninguém.
Daniel: O governo tá dizendo que vai combater o crime organizado. E é isso que ele tem que fazer. Vá lá no PA Areia e combata o crime organizado. Não é isso que ele tem que fazer? Combater o crime, qualquer crime. Lá tem muito bandido. Enquanto não for lá e botar aquela porcaria abaixo, o crime vai continuar mandando e não vai ter pra onde correr. Falta justiça. Espero que pelo menos isso na parte do governo Bolsonaro seja feita.
A gente precisa que o governo olhe com mais carinho pro verdadeiro dono da terra, aquele que trabalha e nasceu em cima da terra. A gente não teve essa chance por causa do crime organizado que tá lá sem nunca ter uma fiscalização digna. As maiores fraudes e corrupção estão lá, começaram a partir do desprezo do projeto e do direito das famílias assentadas.
Ali começou o crime. A gente não vai abandonar as famílias, porque a gente conhece o medo estampado no rosto de cada um ali. Mas a gente tem a certeza que o dia de amanhã, a gente não conta. Cada entrevista que a gente dá, muitas vezes a gente pensa que é a última. Enquanto a justiça não for feita, o crime vai continuar acontecendo. Talvez essa seja a nossa última entrevista.
*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.