Brasil

A luta das Guarani e Kaiowá na área mais perigosa para mulheres indígenas

Reportagem foi a Dourados, município com mais casos de violência sexual contra mulheres indígenas

A Kuñangue Aty Guasu é organizada todos os anos pelas próprias mulheres Guarani e Kaiowá
 (Everson Tavares/Agência Pública)

A Kuñangue Aty Guasu é organizada todos os anos pelas próprias mulheres Guarani e Kaiowá (Everson Tavares/Agência Pública)

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Clara Cerioni

Publicado em 2 de novembro de 2019 às 08h00.

Última atualização em 2 de novembro de 2019 às 08h00.

“Eu vou parar a plenária”, diz a voz ao microfone. “Do que adianta nós, mulheres, falarmos da violência sendo que os homens estão circulando?” O recado é dado pela jovem Aradunhá Kaiowá aos homens que foram aos poucos se dispersando. Ela conduz o segundo dia de discussões da sétima Kuñangue Aty Guasu, a grande assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá, realizada a cada ano em uma terra indígena habitada por esses povos no Mato Grosso do Sul.

Em 2019, o encontro ocorreu em setembro na aldeia Yvy Katu Potrerito, município de Japorã, na fronteira com o Paraguai. O protagonismo é totalmente feminino, mas os homens são convidados a estar ali e ouvir os relatos sobre problemas que os envolvem diretamente.

“É importante falar sobre violência e também é importante ouvir”, acrescenta a nhandesy Helena Gonçalves, vinda da aldeia Limão Verde, no oeste do estado – nhandesy é como os Guarani e Kaiowá se referem às rezadoras e curandeiras tradicionais. A senhora de cabelos ajeitados num cocar florido fala rapidamente em guarani, língua compartilhada com algumas variações pelos dois povos.

A Kuñangue Aty Guasu é um ambiente seguro para que essas mulheres tenham suas vozes e histórias respeitadas. “A maioria delas afirma que esse é o único espaço no qual conseguem falar para discutir o que atinge elas, os filhos, a família”, conta à reportagem Aradunhá, uma das organizadoras da assembleia.

O encontro dedicou um de seus três dias de discussões à violência contra a mulher nas aldeias. Não só os homens indígenas, mas também as autoridades karai – como são chamados os não indígenas – ouviram por horas as falas de rezadoras, lideranças e estudantes, mulheres das mais variadas idades.

Uma delas, Otília Hilário, de 86 anos, nhandesy da Terra Indígena (TI) de Amambai, disse algo que seria repetido por muitas outras vozes até o fim da reunião: “Nossos maridos batem na gente, nos chamam de ‘saco de pancadas’. Não gostamos, mas muitas não falam sobre isso”.

Vida em confinamento

Segundo o Ministério da Saúde, Amambai, onde vive dona Otília, registrou 79 casos de violência doméstica contra mulheres indígenas em 2017, último ano sobre o qual há estatísticas consolidadas – é o número mais alto do Brasil.

Dourados, a segunda maior cidade sul-mato-grossense, tem dados ainda mais alarmantes: além de figurar como o segundo município brasileiro com os maiores registros de todos os tipos de violência contra as mulheres indígenas, lidera o ranking do abuso sexual contra elas no país, com 31 casos em 2017. Eles são cerca de metade de todas as ocorrências registradas no estado naquele ano.

Os indicadores de Dourados levam o Mato Grosso do Sul a ser o estado com maior número absoluto de violência sexual contra mulheres indígenas, com quase o dobro dos registros de qualquer um dos estados da Amazônia brasileira. Desde 2012, é a cidade onde mais mulheres indígenas são vítimas de violência sexual no Brasil. Quem vive e estuda essa realidade considera que o cenário pode ser ainda pior devido à subnotificação.

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Por alguns dias, estivemos na Reserva Indígena de Dourados, a TI mais populosa do Mato Grosso do Sul, cravada entre lavouras de monocultura que ajudam o estado a ocupar o posto de quinto maior produtor de grãos do país.

Seu território se estende parte por Dourados e parte pelo município vizinho, Itaporã. Andando pelas ruas de terra das duas aldeias que a compõem, Bororó e Jaguapiru, nota-se que o Estado falha em fornecer condições de atenção básica às pessoas que vivem ali.

Com aproximadamente 15 mil moradores, de acordo com os dados mais recentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o território supera mais de 40 municípios do estado em termos de população, mas, entre suas escolas, apenas uma é de ensino médio, há somente quatro postos de saúde, uma linha de ônibus circular (que transita em poucos horários – de manhã, no meio do dia e ao fim da tarde – e por uma pequena parcela do território) e, na assistência social, conta apenas com um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que, responsável por atender a todos os habitantes, funciona com dificuldades – os funcionários relatam que faltam materiais básicos, como folhas de papel sulfite, e não há gasolina suficiente para fazer visitas de acompanhamento.

Três povos diferentes, Guarani, Kaiowá e Terena (estes, em menor número e com aspectos culturais distintos dos dois primeiros), se misturam em 3,5 mil hectares. O número em si não diz muita coisa, porém com uma simples comparação é possível ter uma ideia da superlotação: enquanto, na reserva, cerca de 432 pessoas ocupam 1 quilômetro quadrado, considerando toda a área do município de Dourados, essa média é de 51,4 pessoas num pedaço de terra da mesma extensão – densidade demográfica nove vezes menor.

As casas são bastante próximas umas das outras, e se vê poucas hortas e plantações familiares. “Confinamento” é uma palavra que a reportagem ouviu de muitos dos moradores para descrever a vida no local.

A falta de espaço físico é determinante para a atual dinâmica da vida na reserva porque, tradicionalmente, os Guarani e Kaiowá se dividiam em grandes casas coletivas, distantes em quilômetros umas das outras, onde vivam famílias extensas, constituídas por pequenos grupos familiares.

Ainda hoje a organização das aldeias se dá pelas famílias, cujos núcleos vivem próximos, mas se dividem em casas separadas, menores e muito mais próximas do que antigamente. Famílias extensas que não necessariamente possuem afinidades entre si são obrigadas a conviver em uma área de tamanho limitado.

“A reserva é um espaço de recolhimento de uma população que estava muito mais dispersa. Tanto é que há, na reserva, três etnias distintas. Cada uma tinha seu território”, destaca o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Faculdade Intercultural Indígena (Faind), vinculada à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Nesse contexto, os índices de violência contra a mulher não foram os únicos a explodir. Basta entrar na casa de alguém e conversar por alguns minutos para aparecerem os relatos sobre casos de assaltos ou mesmo de assassinatos.

Levantamento do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF-MS) com números do Ministério da Saúde reflete essa percepção: entre 2012 e 2014, a taxa de homicídios entre os indígenas da região de Dourados foi de 101 vítimas a cada 100 mil habitantes – quase o dobro da taxa de homicídios de indígenas no Mato Grosso do Sul, que é de 55,9. 

Para ter uma ideia, os homicídios entre a população geral no estado são cerca de um quarto da taxa na reserva, 26,1 a cada 100 mil. A média brasileira é de 29,2. A Agência Pública tentou obter dados mais atualizados, mas a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) do Mato Grosso do Sul não respondeu às nossas solicitações.

“É o branco que traz”

Se, por um lado, existe a sensação de que a criminalidade tem feito parte da vida na reserva, ela vem acompanhada pela noção de que a violência não integra os modos de vida tradicionais dos Guarani e Kaiowá. A nhandesy Alda Silva, de 70 anos, nos recebeu numa tarde de sábado, do lado de fora de sua casa, na aldeia Jaguapiru.

Usando os cabelos lisos parcialmente presos e trajando um vestido colorido, estava sentada diante do terreno antes ocupado pela casa de reza que por anos manteve com seu marido, o nhanderu – ou rezador – Getúlio Juca, e que em julho foi consumida por um incêndio cujas circunstâncias ainda são investigadas.

As nhandesy e os nhanderu são referências em suas comunidades pelo papel espiritual que desempenham – no guarani, esses termos significam “nossa mãe e “nosso pai”. Com dona Alda, não é diferente. Ela conta que mulheres da aldeia a procuram para relatar episódios de violência dos quais são vítimas. “Chega estupro, violência [doméstica], chega também marido que mata a mulher”, afirma.

“Elas vêm pedir socorro, sou eu que atendo aqui. Levanto à noite, a qualquer hora atendo. Não tenho celular, quem tem são minha filha e meu marido. Aí já vou avisar eles para ligar, peço para eles me emprestarem o celular e ligo para a polícia ou para a Sesai virem ver o que está acontecendo.”

Quando ouve a pergunta sobre as raízes dessas violências, dona Alda diz que “é o branco que traz pra dentro da aldeia”. “Nós não tínhamos isso aí, não, a gente vivia bem. Podia sair à noite e ir na Missão [Evangélica Caiuá, que tem sede dentro da reserva], ir até a Bororó tomar chicha”, narra, referindo-se à bebida alcoólica produzida pela fermentação do milho e outros cereais, tradicionalmente consumida por diversos povos nativos das terras baixas da América do Sul, incluindo os Guarani e Kaiowá.

Ao longo do tempo, a chicha perdeu espaço para o álcool destilado, que chegou pelas interações com a cidade. Por sinal, muitos dos casos que nos foram relatados sobre mulheres espancadas ou alvo de ataques psicológicos nas aldeias envolvem o uso excessivo da bebida e outras drogas pelos homens agressores.

Para o assistente social Kenedy Morais, indígena Guarani que mora na reserva e trabalha no único Cras da região, na aldeia Bororó, a utilização abusiva dessas substâncias é reflexo da precariedade de condições básicas de vida, como o trabalho, e da falta de perspectivas que isso causa. Ele diz que os indígenas contam com poucas possibilidades de geração de renda dentro do próprio território, como projetos de agricultura familiar, e os homens se veem obrigados a buscar serviços na cidade.

Acabam trabalhando, por exemplo, como garis – são a maioria dos funcionários de uma das empresas responsáveis pela limpeza urbana de Dourados, segundo reportagem publicada pela revista piauí em julho. “Estamos às margens mesmo, e há uma população alijada de direitos. Toda essa situação incide em altos índices de alcoolismo”, avalia.

O uso de drogas e álcool virou um problema tão relevante na Reserva Indígena de Dourados que, em 2017, o MPF e as defensorias públicas do Mato Grosso do Sul e da União ajuizaram uma ação civil pública pedindo que os governos federal, estadual e municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao consumo dessas substâncias.

Os autores da ação alegaram que as diferentes esferas do poder público têm sido omissas “quanto aos deveres constitucionais e legais de tutela à vida e à saúde da população indígena de Dourados”. O MPF-MS informou que houve um acordo extrajudicial, prestes a ser homologado, no qual a União, o estado e o município se comprometeram a desenvolver políticas públicas para promover a saúde mental dos moradores da reserva.

O périplo até as autoridades

Emilena Arce, de 22 anos, e Roziane Ramires, de 24, são duas das mulheres para quem álcool é sinônimo de violência. Sentadas em frente à cozinha do Cras, onde tomam tereré – a tradicional bebida de erva-mate e água gelada – num início de tarde em que o sol brilha forte, contam à reportagem os momentos de violência que sofreram pelas mãos dos ex-maridos, indígenas como elas, que se tornavam bem mais agressivos depois de beber.

Roziane mostra um dos braços, marcado por uma extensa e grossa cicatriz, resultado de uma cirurgia que precisou fazer no ano passado para reparar um dos ossos. A fratura foi causada pelo ex-companheiro, que bateu nela com um pedaço de pau. “Ele queria bater na minha cabeça, mas eu ergui o braço”, relembra.

O casal viveu junto por oito anos na reserva, onde morava com os dois filhos – um menino de 9 anos e uma menina de 5. Roze – como é chamada pelas pessoas próximas – acha que o problema do ex-companheiro era a bebida, componente presente na maioria das ocasiões em que apanhou durante o casamento. Apesar disso, demorou a denunciar: “Eu tinha medo”. Durante a conversa, ela não permitiu ser fotografada.

Emilena havia ido ao Cras naquele dia para participar de um curso profissionalizante de pizzaiolo. Intercalava frases a olhares para a mãe, Rosemara, 39, que também se separou do ex-marido, pai de Emilena e outras duas meninas, após sucessivos episódios de agressão.

Anos mais tarde, a filha mais velha se viu na mesma situação: de tanto apanhar do então marido, tomou a decisão de terminar uma relação de quatro anos, mesmo tendo que cuidar de uma bebê recém-nascida.

Ele ficou violento, diz a jovem, depois de começar a trabalhar na coleta de lixo da cidade. “Uma vez, quando chegou em casa, jogou minha menina contra a parede e me bateu”, relata.

“Quando eu corri para a casa da minha mãe, ele pegou minhas roupas e cortou tudo, quebrou todas as minhas coisas e foi embora. Antes ele fosse e não voltasse, mas ia e vinha mais tarde de novo, com a mesma agressão.” Por causa das ameaças, tinha medo de denunciar, mas acabou indo à delegacia. “Se eu não largasse ele, ia morrer.”

Inúmeras são as dificuldades no caminho das mulheres Guarani e Kaiowá vítimas de violência em direção à denúncia. “São poucas as mulheres que falam ‘hoje chega’. Por medo de ameaças, de tirar seus filhos de casa, de não ter onde morar. A coisa mais difícil que tem é a violência contra a mulher aqui dentro da aldeia”, ressalta a agente de saúde Maria de Fátima Cavalheiro, de 41 anos.

Ela mesma, indígena Guarani e moradora da aldeia Bororó, já precisou romper com o ciclo, após anos sendo alvo de agressões do ex-marido. Como seu trabalho envolve visitar as pessoas, hoje tenta orientar mulheres que estão na mesma situação. Em muitas famílias, ela relata, os homens ocupam o papel de provedor financeiro, o que distancia ainda mais as vítimas do fim da violência.

Quando as mulheres decidem procurar as autoridades, novos obstáculos aparecem. Um deles é a dificuldade de chegar à única Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM) da cidade, localizada a mais de 8 quilômetros da reserva.

Os ônibus circulam em poucos horários e por rotas limitadas, então as pessoas dependem basicamente de seus próprios veículos, motos, carroças e bicicletas para chegar até lá. Senão, a alternativa é ir a pé por um trajeto que leva no mínimo uma hora e quarenta minutos para ser percorrido e inclui estradas de terra e rodovias.

Para a mulher sair daqui e ir à delegacia, muitas vezes ela não tem o transporte”, aponta a assistente social indígena Tatiane Martins, funcionária do Cras. Para ela, quando uma vítima consegue chegar à delegacia, “é porque fez um esforço danado, teve uma força de vontade enorme para ir lá, fazer uma denúncia”.

Se um caso de agressão física ou abuso sexual acontece em alguma das aldeias, as vítimas e seus familiares também têm dificuldades para pedir ajuda, já que o sinal de celular e internet móvel é inconstante, como a Pública observou.

Ligar para a polícia pode ser uma atitude pouco efetiva: a Polícia Militar demora para atender aos chamados e só o faz depois que os capitães, lideranças presentes nas duas aldeias, autorizam sua entrada. Questionada sobre essa situação, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul não respondeu até a publicação da reportagem.

Segundo Paula Ribeiro, delegada titular da DAM de Dourados, essa é a realidade da sua equipe, que normalmente vai à reserva para realizar oitivas, intimações ou mesmo prisões. “A gente só entra com autorização. Se a gente chegar lá com intimações para fazer e falar ‘não entra’, nós não entramos. Fazemos o relatório dizendo ‘hoje não foi autorizada a entrada'”, afirma.

“Em qualquer bairro da cidade, a gente agiria diferente, não tem essa de ‘a polícia não entra'”, admite a delegada. “Nas aldeias, a gente tem que respeitar a questão cultural. Eles são os donos da terra. Estamos tentando encontrar um meio-termo.”

Mas a ideia de que acatar a autoridade do capitão equivale a respeitar a cultura dos Guarani e Kaiowá não é consenso. Criada pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a figura do capitão tinha como função auxiliar os chefes de posto do órgão a fazer valer suas ordens nas reservas indígenas instituídas no início do século 20.

O cargo é tradicionalmente ocupado por indígenas, que antes eram designados pelo SPI e hoje, na Reserva Indígena de Dourados, são eleitos.

Segundo pesquisadores, esse personagem sempre representou um foco de tensão, pois a lógica pela qual foi instituído – a de concentração de poder – e sua atuação desrespeitam o sistema de organização dos Guarani e Kaiowá.

O capitão nunca será unanimidade porque representa um grupo, e ninguém conseguirá representar todos, porque eles são organizados em famílias extensas”, destaca a antropóloga Lauriene Seraguza, que faz pesquisa junto às mulheres Guarani nas áreas de retomadas territoriais em Mato Grosso do Sul, na fronteira entre Brasil e Paraguai.

“O Estado precisa levar em consideração que cada parentela tem sua liderança, seu rezador, seu modo de se relacionar.” Por isso, explica, não faz sentido o Estado nomear apenas duas lideranças como porta-vozes da comunidade e utilizá-las como mediadores de sua relação com a reserva.

Se a vítima de violência superar todas essas dificuldades e conseguir chegar à delegacia para denunciar, deve se deparar com mais um problema. Nas aldeias, o guarani é o idioma mais falado.

As pessoas sabem o português, mas não o consideram sua primeira língua, o que faz com que muitas mulheres não sejam plenamente compreendidas em suas denúncias. A necessidade de uma intérprete é apontada por muitas delas, mas a demanda até agora não foi atendida pelos órgãos de segurança pública.

A delegada Paula Ribeiro garante que isso está nos planos, já que ela mesma acredita que a falta de uma intérprete acaba desencorajando a denúncia. “Tem muita mulher que ainda enfrenta a barreira da língua”, diz. “E, quando isso acontece, ela vai procurar uma pessoa na aldeia que não necessariamente está engajada na luta, que não vai repassar a notícia para ninguém.”

Sem escuta

A denúncia não é o capítulo final da busca por acolhimento. O que acontece depois que os casos de violência doméstica são levados ao poder público também não atende às suas necessidades, afirmam as Guarani e Kaiowá. “Não existe uma maneira que proteja as mulheres indígenas de acordo com as suas especificidades”, aponta Aradunhá Kaiowá, numa brecha de programação da Kuñangue Aty Guasu.

Enquanto o resto das pessoas, espalhadas pela aldeia, se servia do almoço coletivo preparado pelas cozinheiras indígenas, ela se dividia entre a refeição, a entrevista e a produção, em seu notebook, do relatório final do encontro, que reuniria os pontos altos das discussões e as demandas mais urgentes às autoridades.

Aradunhá cresceu na Reserva Indígena de Dourados e hoje vive na cidade, onde se graduou em ciências sociais pela universidade federal. Para organizar a grande assembleia, teve ao seu lado outras lideranças, todas mulheres. Uma delas é Flávia Nunes, estudante universitária que, com 22 anos, é uma das poucas integrantes femininas do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Mato Grosso do Sul.

Era a última noite de reunião quando ela falou com a Pública, depois que o ritmo dos afazeres já havia se acalmado. “A Lei Maria da Penha ajudou a punir os homens que cometem essa violência grave, mas nós estamos lutando para que tenha uma lei adequada que garanta o direito das mulheres indígenas”, ponderou.

No dia anterior, uma roda de mulheres havia debatido as limitações da Maria da Penha e da rede de proteção às vítimas. No centro do círculo desenhado pelas cadeiras, uma tira de papel pardo era preenchida com as falas consideradas mais importantes. Uma das frases escritas com tinta guache era, na verdade, um questionamento: “Lei Maria para quem?”.

De um dos pontos da roda, uma jovem de 20 e poucos anos destacou a necessidade de as mulheres Guarani e Kaiowá serem acolhidas por suas pares nas delegacias – “Às vezes, elas [as vítimas] não falam para os brancos por medo, e, se tiver uma mulher indígena lá atendendo, ela vai chegar contando na língua o que aconteceu realmente.”

Noutro canto, uma moça mais ou menos da mesma idade completou dizendo que “só nós, indígenas, entendemos a dor do próprio índio, que é uma dor infinita”. Outras mulheres assentiram com a cabeça.

Em algum momento da conversa, surgiu a discussão de que as medidas protetivas não têm muita validade nas aldeias. Dias antes, em Dourados, a delegada Paula Ribeiro havia reconhecido essa falha: “O cumprimento de medidas dentro da aldeia não adianta falar que existe, porque não existe”.

Entre os fatores que dificultam sua efetividade, está o fato de as famílias serem a base da organização espacial das aldeias. Para que se cumpra a medida protetiva, a vítima ou o agressor precisaria se afastar do espaço onde vivem todos os seus familiares e, por consequência, onde está estabelecida a maioria das suas relações afetivas. “Eles não têm para onde ir. As perspectivas para eles são bem limitadas”, avalia a delegada.

Como a lei propõe a criação de casas-abrigo para acolhimento das mulheres em situação de violência, elas acabam duplamente vitimizadas: além de lidar com a agressão sofrida, normalmente são elas que precisam sair de casa. No caso das mulheres indígenas, a situação é mais grave, justamente porque isso significa a separação da maioria dos parentes, que têm uma importância central em suas vidas.

“Às vezes, pensamos muito na proteção da mulher, mas acho que está faltando um pouco o olhar da dignidade. Como essa mulher se sentiria mais dignamente atendida? Mandando ela para uma casa-abrigo lá em Campo Grande? É difícil, temos que nos colocar no lugar dessas pessoas”, avalia a titular da DAM.

As discussões da Kuñangue Aty Guasu revelam que as Guarani e Kaoiwá sabem pontuar com precisão o que não funciona para elas. O problema, dizem, é que o Estado dificilmente as leva em conta na formulação de políticas públicas.

“Hoje, as políticas são pensadas de cima para baixo, nunca são construídas. Grande parte das políticas implantadas não serve por conta disso: não tem continuidade e não dialoga com as interessadas, as mulheres que estão sofrendo violência”, argumenta Indianara Ramires Machado, presidente da Ação dos Jovens Indígenas (AJI), organização que trabalha para empoderar a juventude da Reserva Indígena de Dourados por meio da educação.

No fim das contas, eventos como a assembleia, organizados pelas próprias mulheres indígenas, são alguns dos poucos ambientes na contramão da ausência de escuta. O documento final do encontro é uma tentativa de que as demandas dessas mulheres cheguem a autoridades de variadas esferas.

Os encaminhamentos incluem a reformulação na Lei Maria da Penha para que contemple as "especificidades das mulheres indígenas”; a criação de delegacias na Reserva Indígena de Dourados e em Amambai, onde haja mulheres trabalhando, incluindo intérpretes Guarani e Kaiowá; e a construção de novas alternativas de atendimento para mulheres e crianças em situação de violência, com o apelo para que haja Cras e Centro de Referência em Assistência Social (Creas) em todas as comunidades.

No único Cras da Reserva Indígena de Dourados, a equipe tem a intenção de promover grupos com homens envolvidos em casos de violência, mas faltam recursos, pessoal, tempo. “É difícil porque não conseguimos atender nem a nossa própria demanda. A gente tem ideias, tem vontade, mas [nossa atuação] é limitada”, afirma psicóloga Bárbara Marques, indígena e moradora de uma das aldeias, a Jaguapiru.

Apesar da situação de falta de recursos, Bárbara não perde as esperanças. “Eu acredito no trabalho da prevenção: orientação para os homens, qualificação, atividades de lazer, para que eles tenham perspectiva de vida, tanto os homens como as mulheres.”

De onde vem a violência

Andando pela Reserva Indígena de Dourados ou circulando pela aldeia Yvy Katu Potrerito, as conversas com os Guarani e Kaoiwá nos revelaram um pano de fundo para a violência que acomete suas comunidades, sobretudo a que vitima as mulheres: a perda da terra. Essa história, que foi sendo construída em capítulos, remonta ao século retrasado.

Parte do território dos Guarani e Kaiowá foi ocupado na década de 1880, quando o comerciante gaúcho Thomaz Larangeira recebeu do Império brasileiro, em troca de sua participação na Guerra do Paraguai, arrendamentos na parte sul da área hoje ocupada pelo Mato Grosso do Sul, território repleto de ervais nativos.

Criou a Companhia Matte Larangeira e, com o tempo, adquiriu o monopólio da exploração regional da erva-mate, ainda que fosse muito utilizada também pelos povos nativos que ali viviam.

“A mão de obra de fora que trabalhava na Matte Larangeira era constituída basicamente de homens paraguaios, sem suas famílias. Eles buscavam ter acesso às mulheres indígenas e, chegando nas casas-grandes, as desrespeitavam”, diz o professor Levi Marques Pereira.

“Isso levou os indígenas, para serem respeitados, a duas coisas: adotarem o modelo de residência individualizado, considerado civilizado [pelos paraguaios]; e os homens Kaiowá e Guarani passaram, muitos deles, a desenvolver uma atitude de ‘dono da casa’, para manter uma barreira contra os paraguaios – usar o mesmo jeito de se apresentar. Além disso, muitos paraguaios acabaram casando com mulheres indígenas. Há uma migração da masculinidade paraguaia para dentro das comunidades.”

De acordo com o antropólogo, o convívio em casa coletiva, comum antes da Matte Larangeira, produzia um mecanismo de controle social da violência contra a mulher, já que os familiares formavam “um núcleo de proteção”. “Numa briga de casal, esses parentes iam se envolver”, declara. “A residência separada do casal favorece a violência.”

As perdas de terra fizeram com que o SPI – que depois seria substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – criasse, na primeira metade do século 20, reservas no sul do Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul (a separação entre os dois estados se deu em 1977), para que os indígenas fossem abrigados em áreas delimitadas pelo governo, liberando assim a região para o avanço da atividade agropecuária e colonização.

A de Dourados foi instituída em 1917. “O deslocamento [dos indígenas] para a reserva foi compulsório, muitas vezes sob o uso da violência, perpetrada por agentes do Estado ou por particulares que requereram e titularam terras na região”, explicam Pereira e Graciela Chamorro, também professora da UFGD, em artigo.

Segundo os pesquisadores, a ideia do Estado, ao criar a reserva, era fazer com que os Guarani e Kaiowá fossem, aos poucos, perdendo sua condição de indígenas e se incorporassem à sociedade nacional. “A expulsão do território, a violação dos direitos e o confinamento dentro das reservas – causado também pelo preconceito da cidade no entorno – foram fazendo com que as pessoas tivessem que viver outros modos de vida que não os que elas conheciam”, aponta a antropóloga Lauriene Seraguza.

O processo de perda territorial e confinamento na reserva culminou, de acordo com Pereira e Lauriene, num movimento de reconquista dessas áreas, o que gerou um intrincado conflito fundiário na região: de um lado, os indígenas, criando as retomadas – acampamentos que visam à recuperação dos tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani); do outro, fazendeiros que alegam ser donos das terras e reagem às ocupações.

Para Lauriene, só a partir dessa recuperação histórica é possível entender os casos de violência contra mulheres indígenas em Dourados. “A violência presente na Reserva Indígena de Dourados é uma consequência da ação do Estado contra os índios, e não dá para o Estado culpabilizá-los por ela. É fruto de um processo histórico de violências contra as suas vidas”, analisa.

“Quem são os índios nas imprensas locais? São tachados de violadores, vagabundos, preguiçosos, mentirosos; os que batem, estupram e matam. Isso não é verdade, é uma tentativa de culturalização da violência.”

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública

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