Edifícios icônicos do centro de São Paulo: Banespa e Martinelli (PriscilaZambotto/Thinkstock)
Luiza Calegari
Publicado em 1 de dezembro de 2017 às 06h00.
Última atualização em 1 de dezembro de 2017 às 11h33.
São Paulo – Mais um projeto de revitalização para o centro de São Paulo foi apresentado por uma gestão municipal no fim de setembro. A planta, doada pelo arquiteto e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner e anunciada pelo prefeito João Doria (PSDB), prevê a criação de bulevares e duas linhas turísticas de ônibus elétrico no entorno das avenidas Rio Branco e Duque de Caxias.
O anúncio levanta questionamentos comuns entre pessoas que moram na cidade há algum tempo: dessa vez sai? Por que é tão difícil levar para a frente as obras no centro de São Paulo? Não há uma resposta simples, mas vários aspectos explicam os fracassos e apontam novas possibilidades.
Para a urbanista e ativista Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o problema central é a própria ideia de “revitalização”: a palavra remete a devolver vida a uma área que está morta, e o centro da cidade pode ser qualquer coisa, menos um lugar morto ou abandonado, na opinião dela.
“Quando a classe média e alta ‘migrou’ para a região da Paulista e zona oeste da cidade, o centro se popularizou. Então, se chama de degradação um processo que é de popularização”, defende Rolnik. Além disso, a área tem um patrimônio histórico tombado significativo e propriedade muito fragmentada, o que também dificulta o investimento do mercado, segundo a urbanista.
O resultado então, é o que ainda se vê atualmente: a baixa renda da população limita os investimentos nos edifícios já existentes, que se precarizam; o poder público não faz o suficiente pela manutenção dos espaços históricos; a área é considerada “degradada” e não há incentivos para revitalizá-la, já que quem mora no centro tende a não ser tão rico.
Fernando Chucre, o secretário de Habitação do município, resume a situação da cidade: “Usando todo o orçamento da prefeitura de 2018 só para a construção, levaria 120 anos para zerar o déficit habitacional [necessidade de novas moradias] da cidade”. Ou seja: não dá para o poder público resolver esse problema sem a ajuda da iniciativa privada.
Para Fernando Mello Franco, arquiteto da Urbem e ex-secretário de Urbanização da gestão de Fernando Haddad, a repovoação do centro é uma questão de sobrevivência. “A gente sabe que a cidade não pode mais se expandir para as bordas por causa do meio ambiente, isso tem acarretado problemas graves de abastecimento de água. Precisa preservar os mananciais, a sobrevivência da população inteira depende disso”.
Para ele, portanto, é preciso aumentar a densidade populacional, colocar mais pessoas para morarem nos lugares já habitados, o que pode acarretar em alguns problemas de convivência. Esse desafio, de humanizar e integrar os projetos urbanísticos, foi a base para a implantação da Escola da Cidade, um centro de ensino e laboratório de projetos de arquitetura que fica colado ao IAB, o Instituto de Arquitetos do Brasil, na rua General Jardim, perto do metrô República (mais uma prova de que o centro não é um local a ser ressuscitado).
Para o diretor da Escola da Cidade, Ciro Pirondi, o desafio específico do centro de São Paulo é não forçar a expulsão dos moradores originais do local. “Não podemos fazer como foi feito no Pelourinho, em Salvador. Não dá para tirar as pessoas que viviam lá, que mantiveram o bairro interessante por tanto tempo, para colocar uma urbanização artificial que não se sustenta, não tem consistência, para acontecer o que acontece hoje lá: está quase abandonado”.
Silvia Schor é pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe, núcleo de pesquisas da USP) e responsável pelo censo da população de rua de São Paulo. Ela afirma que, se a intenção é revitalizar o centro de São Paulo, um ponto chave a ser observado é que o número de pessoas dispostas a morar lá é restrito.
“Os apartamentos da avenida São Luís, por exemplo, são maravilhosos: espaçosos, iluminados, depois de uma reforma podem virar a casa dos sonhos. Só que eles não têm garagem, não têm varanda gourmet. Quem quer esse tipo de imóvel jamais vai morar no centro”, explica Schor.
A maior ameaça ao ecossistema do centro, atualmente, é o preço do aluguel, que não é alto comparado com regiões nobres, mas tem subido muito nos últimos anos. A alta dos preços acaba expulsando quem estava morando no local, ou empurrando-os para condições cada vez mais precárias de moradia, no processo conhecido como “gentrificação”, ou “expulsão branca”, que se dá por meio do aumento do custo de vida.
Segundo dados do Secovi, o Sindicato da Construção Civil, o preço do aluguel por metro quadrado de um apartamento de dois dormitórios em boas condições no centro de São Paulo subiu de 11,42 reais em setembro de 2007 para 25,89 reais em setembro deste ano, uma alta de 126%. A inflação no período foi de 80%, segundo a calculadora de correção monetária do Banco Central.
O preço atual, no entanto, não é o pico do período, que aconteceu em 2015, quando o preço do metro quadrado chegou a ultrapassar os 29 reais. Com a crise, o custo do aluguel voltou a baixar, mas a retomada econômica pode significar um novo aumento no curto prazo.
Por outro lado, o déficit habitacional da cidade de São Paulo (que abrange a necessidade de construção de novas casas) hoje gira em torno de 360 mil moradias, segundo Fernando Chucre, da Secretaria Municipal de Habitação. Além disso, há a inadequação habitacional, que engloba as pessoas que moram em condições irregulares e precárias, onde há necessidade de reforma, e somam cerca de 830 mil famílias. A população de rua não entra no censo nem nessa conta, mas ainda constitui uma questão importante para a articulação do centro da cidade, segundo Silvia Schor.
“O centro é perfeito para os moradores de rua. De dia, fica movimentado pelo comércio, eles conseguem comida nos restaurantes. À noite, as lojas fecham e eles têm lugar para dormir. Uma parcela dessas pessoas, as que vão para o abrigo, têm condição de receber uma moradia e reestruturar suas vidas a partir daí, e o preço do aluguel é um dos fatores que levou essas pessoas à instabilidade e a morar nas ruas. Mas só isso não resolve todo o problema, porque os moradores de rua são muito heterogêneos, tem gente que usa droga e tem gente que tem emprego, que faz bico. Se requalificar o centro, os moradores de rua vão ser os primeiros a espirrar”, explica Schor.
Raquel Rolnik, que também coordena o LabCidade da USP, afirma que o enfoque dado à “guerra as drogas” na região central é outra forma de expulsar os habitantes do centro, citando o exemplo da intervenção feita pela gestão Doria no começo deste ano na cracolândia, que culminou com a demolição de um prédio com pessoas dentro. “É uma estratégia não só de eliminação física de uma parte da população que hoje está lá, como uma forma de demolir uma parte deste parque construído [moradias populares] sem passar pelos procedimentos formais que a situação exigiria”.
Fernando Túlio Salva Rocha Franco, que é presidente do IAB, acredita que a maior dificuldade é a falta de planejamento por parte do poder público para lidar com a diversidade local, que inclui movimentos sociais, centros de comércio populares e coletivos culturais.
“Há pelo menos dez anos a prefeitura não tem um projeto estruturado para o centro, só iniciativas isoladas. São apresentadas soluções aventureiras, e falta tanto uma articulação interna para integrar a medidas quanto promover um debate com os atores do centro para pactuar um acordo que seja benéfico para todos”.
Os próprios governos estadual e municipal, há cerca de uma década, começaram o processo de requalificação do centro dando o exemplo: várias repartições públicas foram transferidas para a região (muitas secretarias ficam próximas das estações de metrô São Bento, Sé, Anhangabaú e República, por exemplo). Mas isso não é tudo o que pode ser feito.
Para Mello Franco e Rocha Franco, a legislação existente para o ordenamento urbano já garante a proteção dos moradores pobres e famílias vulneráveis, por meio da criação de Zonas Especiais de Interesse Social (as chamadas ZEIS). Por esse mecanismo, são demarcadas áreas para construção de novas habitações para pessoas pobres e para regularização fundiária e urbanização de favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais.
No centro, a ZEIS mais notória é um dos poucos projetos para a região que tem caminhado: a Parceria Público-Privada próxima da estação Julio Prestes. A região no entorno da sala São Paulo vai receber um complexo de oito condomínios residenciais (com mais de 1.200 apartamentos) para venda, uma escola de música, uma creche e 66 salas comerciais.
A maior parte dos apartamentos residenciais (1.130) será destinada a famílias que recebem até seis salários mínimos, com prioridade para as rendas mais baixas. Os outros 72 apartamentos, para a faixa de renda de seis até dez salários mínimos, vão ajudar a financiar o custo dos apartamentos da renda mais baixa.
Essa PPP é de responsabilidade do governo do estado. Rodrigo Garcia, secretário estadual de habitação, explica que as próprias famílias fazem um cadastro para registrar interesse nas unidades. Elas são sorteadas, e, depois disso, o Estado vai verificar se elas atendem aos padrões de renda para receberem o financiamento especial.
Por outro lado, todas as prefeituras do país estão passando por dificuldade para manter em pé seus projetos de construção. Há alguns anos, com a expansão do programa Minha Casa, Minha Vida, muitos dos orçamentos municipais de habitação foram substituídos pelos repasses do programa. Agora, com a torneira do governo federal fechando, os problemas financeiros travam novos investimentos.
São Paulo está relativamente protegida neste aspecto, garante Fernando Chucre. Em agosto deste ano, o Ministério das Cidades autorizou um aporte de 50 milhões de reais para obras de reforma, requalificação e construção de nove edifícios e um terreno destinado à locação social na cidade. Grande parte desses empreendimentos será feita no centro.
A locação social é uma outra forma de amenizar o déficit habitacional: a prefeitura subsidia parte do pagamento do aluguel, sem transferir a posse para o morador, e as pessoas que moram lá pagam quantias menores do que as do mercado. Esse trabalho, no entanto, exige fiscalização constante, para garantir que as famílias que estão usufruindo dos benefícios ainda precisam dele de fato. Pelo programa de locação social, existem hoje em São Paulo 903 residências, distribuídas em seis edifícios, como o Palacete dos Artistas, na avenida São João.
Outra crítica constante dos movimentos sociais por moradia é a falta de iniciativa da prefeitura em desapropriar imóveis que estão desocupados e cujos donos devem de milhares a milhões de reais em IPTU ao município. Em relação a isso, Chucre explica que o processo de desapropriação de um imóvel é um dos trâmites judiciais mais complicados que o poder público enfrenta.
O último levantamento do Plano Direto Estratégico de 2014 apontou que existem 992 imóveis cadastrados ou em processo de cadastramento, que podem ou não ser notificados sobre uma eventual desapropriação, e outros 772 imóveis já notificados. O problema, diz Chucre, é que, mesmo depois da notificação, o proprietário pode contestar na Justiça, e os processos acabam se arrastando por anos – a prefeitura está desapropriando agora imóveis que foram contestados pela gestão anterior, por exemplo.
As ações já existentes são promissoras, mas ainda estão longe de atender às necessidades da cidade. Atualmente, a Secretaria Municipal de Habitação tem 12.950 mil moradias contratadas ou em obras. A meta é entregar 25 mil unidades até 2020, entre outras ações, para combater o déficit habitacional de 368 mil novas moradias.
A principal lacuna dos projetos em andamento, segundo Raquel Rolnik, é o levantamento das condições da região. “Em todos esses anos, nunca fizeram um recenseamento. Não há hoje dados confiáveis e atualizados sobre os moradores em pensões nessa área, onde estão, quem são e quais são suas condições”, afirma ela, que coordena iniciativas no LabCidade, da USP, para fazer o mapeamento dos habitantes do centro.
Fernando Túlio Salva Rocha, do IAB, acredita que as propostas que surgirem a partir de agora precisam ser mais inovadoras, para contemplar fenômenos como o Airbnb, que, segundo ele, impactam o preço do aluguel em vários locais.
O chamado ônus excessivo com o aluguel, quando o custo com moradia ultrapassa 30% da renda da família, também precisa ser abordado pelas políticas públicas. Um levantamento do jornal Valor Econômico mostra que o aluguel caro já representava mais da metade do déficit habitacional brasileiro em 2015.
Ciro Pirondi, da Escola da Cidade, acredita que a saída está na miscigenação de classes nos edifícios do centro, com famílias ricas, "remediadas" e mais pobres morando nos mesmos prédios e sendo vizinhas. Mas nem sempre esse tipo de iniciativa dá certo. Nos Estados Unidos, em Nova York, por exemplo, o economista urbano Daniel McMillen, da Universidade de Illinois, aponta uma iniciativa que gerou polêmica: as famílias ricas de um edifício misto não admitiram morar tão perto de pessoas de baixa renda, e exigiram a construção de uma nova portaria, exclusiva para os apartamentos da elite.
Para ele, algumas das soluções adotadas pelos Estados Unidos funcionam no curto prazo, mas não muito bem. Há um programa social, uma espécie de “bolsa-aluguel”, para ajudar as famílias pobres a não irem para a rua. No longo prazo, porém, ele diz acreditar que a solução é que “as famílias pobres não sejam mais tão pobres” – ou seja, a redução da desigualdade social.
Ciro Pirondi, porém, pondera que o centro de São Paulo tem as características necessárias para fazer a mistura funcionar. O exemplo mais gritante de que ela funciona, segundo ele, é o edifício Copan, um dos maiores condomínios residenciais da América Latina, onde convivem desde famílias ricas com apartamentos imensos até estudantes que moram em quitinetes.
Outra possibilidade é levantada por Silvia Schor, do censo da população de rua: incentivar o uso misto dos prédios para comércio e moradia. “Em Paris é muito comum os prédios terem comércio no térreo e apartamentos nos andares superiores. Aqui as pessoas acham ruim, mas é uma das formas de fazer com que o centro não fique abandonado à noite, quando as lojas fecham”. A PPP Júlio Prestes foi planejada dessa forma.
Para Ciro Pirondi, o cerne da questão está em acabar com a indústria do medo. “Se nós conseguirmos fazer esses bolsões mistos, tirar as grades das praças, vamos acabar com a indústria do medo. A indústria da segurança cresce, e aí ninguém mais caminha. A cidade vai ficando chata, a gente continua comprando passagens caríssimas para ver a cidade bonita que o outro fez, como se fôssemos incapazes de fazer isso aqui. Não somos, mas precisa haver vontade política e competência técnica”.