Durante uma década, o processo ficou travado aguardando uma decisão definitiva sobre quem deveria julgar os policiais: a Justiça militar ou a Justiça comum (Antonio Milena/Reprodução)
Estadão Conteúdo
Publicado em 30 de setembro de 2022 às 18h17.
Última atualização em 30 de setembro de 2022 às 18h17.
O massacre do Carandiru completa 30 anos no próximo domingo, 2, sem que os 74 policiais militares denunciados pelo assassinato de 111 presos após uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da cidade, tenham começado a cumprir suas sentenças. Eles foram condenados a penas que chegam a 624 anos de prisão, mas o desfecho do processo tem sido atrasado por sucessivos recursos na Justiça.
Durante uma década, o processo ficou travado aguardando uma decisão definitiva sobre quem deveria julgar os policiais: a Justiça militar ou a Justiça comum. Eles só foram a júri popular entre 2013 e 2014. Os julgamentos precisaram ser fatiados por causa do número de réus.
A condenação pelo Tribunal do Júri não significou, no entanto, a prisão dos PMs. Eles receberam autorização para aguardar a conclusão do processo em liberdade. Desde então, o caso tem sido marcado por reviravoltas judiciais. O Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a anular as condenações e a determinar novos julgamentos por considerar que a acusação não conseguiu apontar exatamente qual a culpa de cada policial.
"Pela lei, quando há mais de uma pessoa agindo conjuntamente, todos respondem pela mesma infração penal. É o que diz o nosso Código Penal. Foi isso que o Ministério Público levou adiante: a individualização possível", explica o promotor de Justiça Márcio Friggi, que assumiu o caso em 2013. "Pouco importa se o policial A matou a vítima B ou se foi o C que matou a vítima D."
Em um novo capítulo do processo, que soma mais de 100 mil páginas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleceram a decisão dos jurados. A discussão agora é sobre a dosimetria das penas, que a defesa considera excessivas. As sentenças só devem começar a ser cumpridas quando o caso transitar em julgado (quando não há mais margem para recurso).
"A condenação não se discute mais: eles estão condenados pelo júri", afirma Friggi. "Agora o caso volta para o Tribunal de São Paulo, que vai apreciar os pedidos relacionados à pena. Infelizmente, isso vai gerar uma nova decisão e deste acórdão podem ser interpostos novos recursos, tanto especial para o STJ quanto extraordinário para o Supremo. Para transitar em julgado mesmo, vai levar um tempo."
Há ainda a chance do caso prescrever, o que significa que o Estado perde o direito de punir os responsáveis pelo massacre. A condenação reinicia a contagem da prescrição, mas o risco é maior para réus com mais de 70 anos. Isso porque o prazo prescricional, que para os crimes de homicídio é de 20 anos, cai pela metade.
Na avaliação do sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Gustavo Higa, o massacre do Carandiru "é um labirinto jurídico". "Nunca foi esclarecido publicamente quem deu a ordem para a invasão que resultou no massacre", afirma. Ele reforça que os avanços também foram lentos em relação às indenizações.
Levantamento atualizado neste mês pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena (NECP) da FGV encontrou 75 processos de indenização movidos por 154 familiares de vítimas, principalmente mães. Ao todo, 69 ações foram julgadas procedentes e em 25 delas, um terço dos pedidos, os familiares receberam o valor total homologado judicialmente. Nas ações individuais, os valores variam de R$ 5 mil a R$ 105 mil. Nas com mais de um autor, há pagamentos de até R$ 755 mil.
O atraso também chama atenção no caso das indenizações. Grande parte dos precatórios foram concedidos mais de duas décadas após o massacre do Carandiru. O tempo médio, do início até o arquivamento do processo, é de 22 anos e 6 meses - ao menos 16 familiares, entre pais e mães das vítimas, faleceram enquanto esperavam o pagamento da indenização, o que habilitou novos herdeiros.
"O Estado não só não ofereceu uma comissão, como as vítimas entraram no processo judicial como qualquer pessoa", disse a pesquisadora da FGV Direito SP Marta Machado, uma das organizadoras do livro Carandiru não é coisa do passado. "Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’."
Em paralelo, a Câmara dos Deputados recebeu um Projeto de Lei (PL) para anistiar os policiais envolvidos no massacre. O texto de autoria do deputado bolsonarista Capitão Augusto (PL-SP), líder da bancada da bala, foi aprovado no mês passado pela Comissão de Segurança Pública e deve passar agora pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), última etapa antes da votação no plenário. O PL diz que "não é justo" condenar policiais que "tiveram a dura missão de arriscar suas próprias vidas em defesa da sociedade ao agirem com os meios necessários para a contenção de uma violenta rebelião".
Embora, historicamente, o instrumento da anistia tenha sido usado no Brasil para perdoar crimes de natureza política, não há regra na Constituição que proíba o perdão de crimes contra a vida. O presidente Jair Bolsonaro (PL) já defendeu o indulto aos PMs. "Se o comandante do Carandiru [coronel Ubiratan Guimarães] estivesse vivo, eu daria", comentou o presidente em 2019.
O coronel Ubiratan Guimarães, então comandante da Polícia Militar de São Paulo, foi assassinado em 2006. Ele foi a única autoridade condenada pela ação no Carandiru, mas não chegou a cumprir pena porque o Tribunal de Justiça do Estado anulou o júri. Os desembargadores entenderam que o coronel não poderia ter sido responsabilizado pelas mortes porque os jurados aceitaram a tese de que ele agiu no estrito cumprimento do dever legal. Durante o processo, Guimarães foi eleito deputado estadual pelo PTB com 56 mil votos em 2002. O número na urna foi o "111".
Quando ainda era deputado, Bolsonaro também foi o único a defender publicamente o então governador de São Paulo, Antônio Fleury Filho (MDB), após o massacre.
O Estadão entrou em contato com a advogada dos policiais que respondem ao processo, mas não teve retorno. Ela comunicou ao STF no mês passado que estava deixando o caso por "motivos de foro íntimo". O ministro Luís Roberto Barroso, relator, mandou a advogada comprovar que os PMs foram comunicados da renúncia. A reportagem não localizou a nova defesa.
A Casa de Detenção de São Paulo foi desativada em 2002, na gestão do ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), e em dezembro daquele ano os pavilhões foram demolidos. O complexo penitenciário deu lugar ao Parque da Juventude e ao Museu Penitenciário Paulista. O pavilhão 9, palco dos 111 assassinatos virou um estacionamento.
Antes mesmo da desativação, o massacre do Carandiru foi seguido por uma política de expansão e interiorização das prisões em São Paulo. O Estado tem hoje 179 presídios.
"O plano de expansão na verdade faz com que se crie no interior de São Paulo cidades-presídio. Algumas têm mais pessoas presas do que pessoas fora da prisão. A expansão na verdade é um projeto carcerário de desenvolvimento", afirma a escritora e pesquisadora Juliana Borges, que estuda política criminal e relações raciais. "Infelizmente eu acho que esse é mais um desrespeito à memória das vítimas do massacre do Carandiru: a gente não teve nenhuma melhoria no sistema prisional brasileiro nos últimos anos em decorrência do que aconteceu."
O efeito colateral da construção de complexos penitenciários fora da capital paulista foi a capilarização do Primeiro Comando da Capital (PCC), que se tornou a maior facção criminosa do País. Para o pesquisador e professor da UFSCar Gabriel Feltran, autor do livro Irmãos: Uma história do PCC, o processo de expansão do sistema carcerário em São Paulo pós-Carandiru é também o processo de consolidação da organização. "Pequenos municípios do interior ganham presídios. Claro que aí espalha o PCC junto. Aquele que foi levado para outro lugar está levando o PCC e a lógica do PCC com ele", afirma.
A própria fundação da facção está relacionada ao massacre. Os primeiros estatutos do PCC citam nominalmente o Carandiru e prometem uma reação contra as más condições vividas no sistema penitenciário.
"Passa por aí a ideologia inicial do PCC. Mesmo que os negócios tenham crescido muito, a facção ainda é muito forte nas cadeias, organizando os presos, continua sendo muito presente naquele mesmo princípio de evitar o estupro, de fazer os debates em torno de cada tipo de conflito, entregando uma Justiça extra-legal para os presos, não só para os ‘irmãos’", explica.
Outro legado do massacre foi a criação da Secretaria de Administração Penitenciária. A gestão dos presídios, que até então ficava a cargo da Secretaria de Segurança Pública, ganhou uma estrutura própria.
Com a mudança, o Grupo de Intervenção Rápida (GIR), vinculado à nova pasta, passou a ter prioridade para agir nos presídios no lugar do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Na prática, no entanto, não há restrição legal para a PM atuar no sistema prisional.
"Mesmo com essas determinações, não houve uma grande modificação na maneira como os presos são tratados. É verdade que o GIR utiliza um armamento menos letal, mas também se vale de cassetetes, uniforme preto diferenciado e sem identificação, com rostos cobertos, capacetes, escudos, cachorros e bombas, se assemelhando em muitos pontos às abordagens antigas", afirma Diego Polachini, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.
O último levantamento da Defensoria de São Paulo sobre a situação dos presídios do Estado, feito a partir de inspeções nas unidades prisionais, aponta que 39,5% dos presos entrevistados narraram agressões físicas nas intervenções do GIR 20,4% relataram uso de cães para ameaçar ou atacar os detentos e outros 19,1% denunciaram o lançamento de bombas de gás.
Em julho, a Justiça de São Paulo condenou o governo a endurecer a fiscalização sobre os protocolos de atuação do GIR. A decisão atendeu a um pedido do Ministério Público do Estado e determinou que os agentes mantenham identificação visível e que todas as incursões sejam gravadas por câmeras instaladas nos coletes.
"É aquele desespero que é difícil de esquecer, muito difícil de esquecer", afirma o educador cultural Claudio Cruz, de 65 anos, sobre o massacre. Conhecido como Kric, ele chegou à Casa de Detenção no fim dos anos 1979 e cumpriu pena de 28 anos por roubo e homicídio.
No dia 1º de outubro de 1992, Kric relata que três presos entraram em conflito no pavilhão 9. "Tentamos conversar para mediar o assunto, porque um dos três estava armado com um revólver 38", disse. Ele era um dos encarregados do pavilhão 8.
Sem muito avanço, a ideia era voltar a mediar o conflito no dia seguinte, mas não houve tempo. No início da manhã, centenas de policiais militares entraram no pavilhão 9 em uma ação relâmpago enquanto os presos de outras alas, como Kric, ficavam com as celas fechadas. "Nós pensamos que o cara (que estava armado) tinha se entregado, mas a gente ouviu gritos de que o Choque estava entrando e um barulho ensurdecedor."
As cenas seguintes são difíceis de esquecer. "Dali a pouco, muito tiro e grito, tiro e grito…", continua. "A gente ficou naquela: ‘isso é barulho mesmo ou é morte?’ Até que alguém subiu na janela para dizer que estavam matando pessoas. Aí o desespero foi total", disse. Os estampidos, relembra, duraram cerca de 25 minutos.
"Eu já vi morte no Carandiru. Em 1982, morreram 16, eu vi outras mortes, mas aquela foi demais", continua. A maior parte dos que estavam no pavilhão 9, relata, eram pessoas mais novas, que eram réus primários ou recém-saídos da extinta Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem). "São 30 anos falando disso, mas a gente não deve, de forma nenhuma, deixar de falar", disse. "A Justiça foi feita para mim, e eu cumpri. Para eles, não."
Ex-mulher de um dos presos, a trancista Andreia Ferreira, de 54 anos, lembra até a cor da roupa que estava usando 30 anos atrás. "Estava toda de rosa", descreve. Ao descobrir que uma incursão da polícia havia causado mortes na Casa de Detenção, ela saiu às pressas da Vila Joaniza, na zona sul, e cruzou a cidade de transporte público.
Desembarcou por volta de 8h do sábado na Estação Carandiru, da Linha 1-Azul do Metrô, e se viu em meio a um turbilhão de informações desencontradas. "A gente queria saber o nome das pessoas envolvidas, e nem isso nos passavam", relembra. "Tinha muito policial, como se fosse um batalhão de polícia. Eram homens revoltados, parecia que tinham sido orientados para matar."
Na época, o então marido e pai dos filhos da trancista, Laurireno da Costa, cumpria pena no pavilhão 8 por roubo. "Demorou uma semana para descobrir se meu marido estava vivo", disse ela, que posteriormente o localizou em um outro presídio, no Brás, para onde havia sido transferido. "Nós, como familiares dos presos, não tivemos nenhum apoio de agente, psicólogo, nada."
Depois do episódio, Andreia, que na época estava grávida de um quarto filho de Laurireno, diz que o marido nunca mais foi o mesmo. Poucos meses depois, eles se divorciaram. "Destruíram uma família", conta, ainda sensibilizada com o que houve. Hoje, ela lidera o movimento Mães do Cárcere, em Praia Grande, litoral de São Paulo, e busca ajudar familiares de outros presos.
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