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Carmen Perez trabalha desde os 22 anos com a criação de bezerros na fazenda Orvalho das Flores, em Barra do Garças, no Mato Grosso (Arquivo/Divulgação)
“Tem muita coisa boa sendo feita no Brasil com relação ao bem-estar animal”, afirma a pecuarista Carmen Perez, brasileira que é referência internacional no assunto. Parte da razão desse olhar otimista pode ser vista no documentário Quando Ouvi a Voz da Terra, que ela acabou de lançar em parceria com o diretor Nando Dias Gomes e a jornalista Flávia Tonin.
O vídeo reúne histórias inspiradoras no universo da pecuária, com exemplos de cuidado com os animais, o meio ambiente e as pessoas. E também conta boa parte da trajetória de Carmen desde que abraçou a causa do respeito aos animais no campo.
A pecuarista trabalha desde os 22 anos com a criação de bezerros na fazenda Orvalho das Flores, em Barra do Garças, no Mato Grosso. Quando assumiu a propriedade, que era do avô, o sistema de criação vigente a deixava insatisfeita. “Os manejos me incomodavam demais. Muito”, conta.
Ela foi então buscar informação e viu que era possível lidar com o gado de maneira mais humanizada e, principalmente, que isso traria benefícios para todos os envolvidos. A partir daí, a mudança conduzida por ela não só mudou os processos na fazenda, mas ganhou eco além da porteira. Hoje, seu trabalho é reconhecido mundialmente e fonte de inspiração no setor.
Um exemplo de padrão adotado em sua fazenda é a interação positiva entre homem e animal no nascimento, incluindo uma massagem nos recém-nascidos (semelhante à shantala feita em bebês). “Os 30 primeiros dias de vida são os mais importantes, para criar uma memória positiva para o animal, uma conexão entre você e ele”, diz ela no documentário.
Entre outras coisas, também não há a marcação a fogo e o desmame é realizado de modo amigável, com bezerro e mãe lado a lado, o que gera menor estresse para essa fase de separação. Tudo isso acompanhado de um constante trabalho de conscientização sobre as boas práticas de criação.
Desde 1965, quando o assunto começou a ser mais discutido, a questão do bem-estar animal (BEA) na pecuária tem evoluído bastante. Principalmente graças ao reconhecimento da senciência animal (de que os bichos também têm capacidade de sentir).
Se lá atrás as recomendações internacionais se limitavam ao bovino conseguir se levantar, se deitar e se mexer apenas, hoje o entendimento é mais complexo e considera, inclusive, os estados afetivos do animal.
“É um movimento crescente, que acontece por meio da educação especialmente. Acredito que essa conscientização melhorou com a comunicação, que hoje é mais dinâmica. A informação chega mais rapidamente às fazendas, para os proprietários, para as equipes, para os pequenos produtores”, avalia Carmen.
Como explicou o zootecnista Mateus Paranhos, professor da Unesp de Jaboticabal (SP) e um dos grandes mentores da pecuarista, o conceito de bem-estar animal é ancorado em cinco domínios, quatro relacionados aos componentes físicos e o quinto, ao fator mental.
Eles dizem respeito a nutrição (privação de alimentos/água e desnutrição), ambiente (desafios ambientais, como calor, frio, poeira, falta de espaço), saúde (enfermidades, lesões, limitações funcionais), comportamento (restrições comportamentais ou nas interações) e estados mentais (medo, solidão, angústia, ansiedade, dor prolongada, fome, sede).
Carmen Perez reforça a necessidade de que todos esses princípios sejam contemplados de forma integrada. “Não adianta a gente só tratar bem o animal e ele estar desnutrido. Não adianta nutrir, se ele está em um ambiente com muita poeira ou um calor excessivo, sem sombra…”, diz.
Um dos grandes desafios de Carmen na sua atuação como disseminadora de boas práticas em BEA foi lidar com questionamentos do tipo “se esse animal vai ser abatido, que diferença faz ele ter uma vida boa ou não?”.
“Esse questionamento já foi feito muitas vezes, tanto por pessoas de dentro da cadeia produtiva quanto de fora”, lembra. “E a resposta é simples: isso faz toda a diferença”.
É um ciclo de ganha-ganha, nas palavras dela, pois os benefícios são para todos, não só para o animal. A começar para quem cuida do gado. “Quando se trabalha com um rebanho calmo, as pessoas que lidam com ele terão uma qualidade de vida melhor, não vão trabalhar com estresse ou adrenalina alta, não correrão risco de vida – porque quando você pressiona um animal, não se sabe o que vai acontecer com ele se sentindo acuado”, exemplifica.
Além dessa, a efetivação do bem-estar do rebanho carrega uma série de outras vantagens para o produtor pecuário. “Animal sem estresse come, emprenha, tem menos hematomas, apresenta um desempenho muito melhor”, ressalta Carmen.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o cuidado adequado favorece ainda o crescimento e a reprodução, melhora a saúde e a produtividade, reduz a incidência de comportamentos danosos e anormais, previne lesões e perdas de produção, contribui para o diagnóstico precoce de doenças e melhora a qualidade da carne.
Também diminui riscos para a saúde humana, por meio da vacinação para doenças que podem ser transmitidas para o homem. E, sem superlotação, há menos risco de propagação da tuberculose entre os animais e, consequentemente, infecção dos seres humanos.
São influenciadas ainda a segurança e a qualidade dos produtos alimentícios. Uma dieta equilibrada ajuda a manter o valor nutricional do leite, por exemplo. O manejo cuidadoso antes e durante o abate evita problemas na qualidade da carne. E a melhoria da higiene e do saneamento garantem mais segurança aos alimentos.
E mais: essas boas práticas mantêm o meio de subsistência de pequenos produtores, colaborando para a estabilidade das comunidades rurais.
Em 2017, a Organização Internacional de Saúde Animal (OIE), organismo internacional encarregado de definir as normas sobre o tema, consolidou sua primeira estratégia de abrangência mundial para a promoção de BEA.
Como fundamento, usou o conceito de “One Welfare” (bem-estar único), que trata exatamente da conexão de bem-estar animal com bem-estar humano, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
“A imagem da pecuária nacional, dentro e fora do país, também ganha”, lembra Carmen. Além do valor moral e um dever constitucional, atender a essas demandas é uma fonte de diferenciação de mercado e criação de valor em longo prazo.
Pesquisadores da Embrapa, no livro Visão 2030: O Futuro da Agricultura Brasileira, já registraram que na atual conjuntura a temática de bem-estar animal “passa a ser uma obrigatoriedade e não mais um diferencial” para produtores brasileiros.
Em um amplo estudo realizado pelo Ministério da Agricultura sobre a estrutura de governança para BEA na União Europeia, nos Estados Unidos e na Austrália – três expressivos atores do comércio internacional de produtos de origem animal –, ficou claro o aumento de iniciativas regulatórias conciliadas com as expectativas da sociedade quanto à questão.
Como dono do maior rebanho bovino do mundo, o Brasil tem se espelhado nesses países e caminhado nessa direção, ampliando os esforços para que mercados compradores possam ser atendidos em relação às garantias de BEA.
O bem-estar animal é hoje assunto de relevância global. É identificado pela OIE como prioritário em seu trabalho, foi considerado integrante de 16 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) e incorpora a agenda de outras entidades internacionais como a Corporação Financeira Internacional (IFC) e a Organização Mundial de Comércio (OMC).
Por meio de suas recomendações e decisões, a atuação dessas instituições tem contribuído com o avanço de políticas relacionadas à questão, possibilitando que regulamentações e padrões fossem estabelecidos e legitimados mundialmente no comércio de alimentos.
Uma das ações concretas foi o estabelecimento da especificação técnica “ISO/TS 34700: 2016, Animal welfare management”, empreendida em 2016 pela OIE e a Organização Internacional para Normalização (ISO).
A norma, além dar suporte à implementação de práticas para assegurar o BEA nos sistemas de produção, visa apoiar os atores da cadeia para que possam externar, de maneira clara e sistematizada, seu comprometimento com a gestão do bem-estar animal. Também serve como balizador de políticas públicas em países em desenvolvimento, como o Brasil.
Os resultados dessas ações, felizmente, já podem ser percebidos no mercado. O Business Benchmark on Farm Animal Welfare (BBFAW) é uma prova disso. Trata-se de um ranking global relacionado a políticas e práticas de BEA, que publica todo ano um relatório com o desempenho de várias empresas globais.
Desde a primeira edição, de 2012, é possível ver melhorias significativas nas práticas de gestão, processos e relatórios das empresas sobre bem-estar dos animais de criação.
Das 150 companhias abrangidas pelo Benchmark de 2019, por exemplo, 88 (59%) agora têm supervisão da gestão do bem-estar, em comparação com apenas 15 empresas (22%) em 2012. E 112 (75%) publicaram objetivos formais de melhoria para a qualidade de vida do rebanho – em 2012, foram apenas 18 (26%).
A brasileira JBS, que integra o ranking, é um exemplo dessa evolução dos padrões. Segunda maior empresa de alimentos do mundo, possui políticas de bem-estar animal para cada unidade de negócio, mantém um comitê especializado no tema dentro da companhia e conta com auditorias frequentes de clientes dos mercados interno e externo para verificação do uso das melhores práticas.
Com vários países e organismos internacionais validando a importância do tema – junto à postura do consumidor, que cada vez mais relaciona BEA ao consumo consciente –, há uma tendência regulatória que amplia a proteção jurídica aos animais.
No Brasil, a primeira lei relacionada ao respeito com os animais foi o Decreto-Lei nº 24.645, de 1934. E a Constituição Federal, de 1988, no artigo 225, traz como competência do poder público proteger a fauna e a flora, vedando práticas que submetam os animais à crueldade.
Desde então, normas que vão além da questão anticrueldade vêm sendo estabelecidas. Segundo documento da Embrapa, o reconhecimento da senciência animal apresenta-se, cada vez mais, como ponto marcante nessa regulação.
Diversos países – França, Portugal e Espanha, por exemplo – já incorporaram a questão em sua legislação ou estão em processo disso, como é o caso do Brasil.